sábado, 25 de novembro de 2017

Lei e Evangelho – A. R. Kretzmann
Tradução Arnaldo Schüler[1]

O procedimento do pastor cristão como seu povo
O procedimento do cristão com sua família
O procedimento do cristão na família de Deus
     “É, por isso, muito necessário distinguir corretamente entre essas duas palavras. Onde tão não se faz, bem a lei nem o evangelho podem ser entendidos, e perde-se a consciência em cegueira e erro. A lei tem seu fim, ao qual não pode ultrapassar: Cristo. Da mesma forma o evangelho tem seu ofício e obra: proclamar o perdão dos pecados à consciência atribulada. Os dois, por isso, não se podem confundir, nem se pode substituir um ao outro sem corrupção de doutrina. Pois, ainda que lei e evangelho são ambos palavras de Deus, não ensinam a mesma coisa... Por isso, se alguém entende da arte de distinguir corretamente entre lei e evangelho, dai-lhe o lugar principal e graduai-o em doutor das Santas Escrituras. Pois é impossível fazê-lo sem o Espírito Santo. Tenho-o experimentado pessoalmente, e diariamente observo em outros quão difícil é distinguir entre o ensino da lei e o do evangelho. O Espírito Santo deve ser o Mestre, caso contrário homem nenhum será capaz de entender e ensinar a diferença. Razão por que nenhum papista, falso cristão ou fanático pode dividir os dois... É fácil dizer que a lei é palavra e doutrina diferente do evangelho;  qualquer um pode fazê-lo. Todavia, mantê-los distintos e separados na prática requer cuida reflexão e trabalho”. – Dr. Martinho Lutero.
     “Tudo aquele que lança mão do evangelho para despojar a lei de sua severidade, ou da lei para privar o evangelho de sua doçura;  aquele que ensina assim que pecadores seguros de si saiam confortados e pecadores aterrorizados saiam mais assombrados ainda; aquele que deixa de enviar aos meios da graça aos aterrorizados pela lei, orientando-os, ao revés, no sentido de simplesmente pediram graça; aquele que explica as exigências e ameaças da lei como significando que Deus estará satisfeito e fará vista grossa aos pecados de fraqueza, desde que o cristão faça o que estiver nele, pregando destarte, o evangelho de modo a aparentar que ele conforte apenas a quem já mostra alguma mudança no coração em sua vida; aquele que tenta persuadir o não regenerado, através das exigências, ameaças e promessas da lei, a que pratique boas obras, e exige de não-cristãos que desistam do pecado, amem a Deus e o próximo; aquele que exige certo grau de contrição e conforta apenas os que experimentaram mudança para melhor; aquele que confunde não poder crer com não dever crer, e assim por diante, tal não distingue corretamente a Palavra da Verdade, senão que baralha e mistura lei e evangelho. Ainda que em outras circunstâncias pregue a lei e o evangelho, e mesmo os defina acertadamente, contudo é réu de doutrina falsa”. – Dr. C. F. W. Walther.
     “Por isso, muitos sermões, mau grado e fartura de fraseologia cristã, estão, entretanto, de todo em todo errados. Não existe a hipótese de o pastor aprender bem demais o uso correto de lei e evangelho. Deve precautelar-se especialmente o pastor jovem, não lhe aconteça cometer erros muito sérios e desastrosos neste sentido”. -Dr. J. H. C. Fritz;

Introdução[2]
   Martinho Lutero considerava da máxima importância a doutrina sobre lei e evangelho. Foi o reconhecimento da diferença entre lei e evangelho que o compeliu a tornar-se reformador. Entendia que os erros da Igreja Romana e dos entusiastas[3] se devem a confusão entre lei e evangelho.
     Atualmente, há uma frente unida contra a distinção luterana entre lei e evangelho. Os pietistas e racionalistas- Schleiermacher em princípios do século XIX e Ritschel no fim – e quase todo teólogo de tomo que permeia entre ambos – Karl Barth, o profeta da teologia dialética e Bultmann,
advogado de um evangelho demitificado[4] - todos acordam na rejeição do descrime básico entre lei e evangelho.
     Quando uma doutrina é rejeitada tão ampla e violentamente, conforme ficou evidenciado no debate recente da matéria, é de bom aviso reexaminá-la. Quem sabe tudo se resume a problema de semântica[5], a infelizes mal-entendidos. E quem sabe os problemas são gerados por superenfatizações.
     Em qualquer hipótese, cumpre nos conhecer a doutrina luterana sobre lei e evangelho. Devemos conhecer o fundamento escriturístico da doutrina, suas implicações teológicas e aplicações práticas. É a essa tarefa que nós nos voltamos nesse estudo. 
     Será nosso objetivo interpretar a doutrina luterana com respeito a lei e evangelho à luz da teologia sistemática e bíblica. No exame da relação entre lei e evangelho, colocaremos o problema à lua da Escritura Sagrada e das Confissões Luteranas.
    As doutrinas da Igreja Evangélica Luterana encontram sua expressão nas confissões reunidas no Livro de Concórdia. Se queremos conhecer a doutrina da Igreja Luterana com respeito a lei e evangelho, nosso ponto de partida não deve ser a opinião desse ou daquele teólogo. Dever ser, ao contrário o testemunho da igreja da Reforma Luterana, tal como se encarnou  nas confissões do século XVI.
     Dirá alguém: “Por que haveríamos enfadar-nos indagando o que nossa igreja creu e ensinou no século XVI? Vivemos no século XX, e nossos problemas diferem dos dias”. Pois muito bem ser o caso. Mas a história de seu diálogo com as Escrituras. Outros, antes de nó0s, trabalharam para entender a Escritura, e nós nos adentramos em seus trabalhos. Evitar a série luta com a Escritura que se desdobrou em nossa igreja no passado, é caminho seguro para a repetição de muitos erros pretéritos. Consequentemente, tomamos o testemunho doutrinário de nossa igreja como ponto de partida.
     Mas o que nos ocupa aqui é mais do que uma discussão teológica. Somos arrepessados ao cenro do lidar de Deus com os homens. É Deus quem fala aos homens através de lei e evangelho. E com seu falar Deus procura alcançar seus objetivos quanto aos homens. Quando manejamos
a Palavra de Deus como pastores e mestre de homens, assumimos uma responsabilidade assustadora, pois que somos embaixadores de Deus. Por essa razão o presente estudo tenciona ajudar a pastores e professores a se tornarem fieis apascentadores do rebanho de Deus.
Comitê Fé Avante
Igreja Luterana-Sínodo de Missouri
Parte I
Lei e Evangelho: Similaridades e Diferenças
A.    Similaridades

1.     Insistem as Confissões Luteranas que tanto a lei como o evangelho são palavra de Deus. (1)
     A lei não é a palavra de um tirano veterotestamentário que assustasse seu povo com exigências e amaças e de todo um todo diferente do Pai amoroso o evangelho. Não. Ambos são palavras do mesmo e verdadeiro Deus.
2.     Tanto lei como evangelho pertencem a todos os homens (2)
     Por evidentes que pareçam a nos, essa afirmação e a anterior, têm tido rejeitadas frequentes vezes ao longo da história da igreja. A primeira foi rejeitada, por exemplo, por Marcião[6], herege gnóstico do segundo século. Pintou ele ao Deus do Antigo Testamento como Deus da lei, tirano cruel, totalmente diverso do Deus do evangelho, Deus de amor, que nos salva das garras do capataz veterotestamentário.
     João Calvino, o reformador de Genebra, faria objeção a nossa tese de que lei e evangelho dizem respeito a todos. Entendia que o evangelho
pertence apenas aos “eleitos”, aos que Deus predestinou desde a eternidade para a salvação. Indicou que os outros, os réprobos, podem
ouvir o e evangelho, mas este não se destina a eles, porque serão condenados assim como assim (Reservamos nossa crítica a isso para mais adiante).
3.     Lei e evangelho devem ser ensinados lado a lado até a eternidade.
     Antinomistas, de Agrícola a Schleiermacher, objetariam aqui. Agrícola, discípulo e ex-companheiro de Lutero, queria defender a liberdade cristã contra o nomismo (legalismo, no original) eliminando a pregação da lei inteiramente do púlpito cristão. Não identificava a liberdade cristã com liberdade do pecado, como fizeram os libertinos. Nem viu outro Deus por trás da lei, como fez Marcião. Antes, via no Decálogo uma dor de cabeça e procurou libertar-se dela cortando a cabeça. Disse Agrícola que a lei foi uma tentativa imperfeita e mal sucedida de Deus no sentido de orientar os israelita através de exigências e ameaças. Parecia-lhe, consequentemente, que a lei não pertencia propriamente à igreja e apena ao tribunal, esfera de governação secular imperfeita como a lei.
     Sustenta a teologia luterana, contra o antinomismo, que a lei se nulifica por causa das imperfeições do homem, antes que em virtude de imperfeições na própria lei[7]. Deve usar-se a lei na igreja por isso que o crente ainda é velho homem, e, como tal está debaixo da lei.

B.    Diferenças

Posto que lei e evangelho são antes palavra de Deus, dizem respeito
todos os homens e devem ser ensinadas lado a lado na igreja, até o fim dos tempos, são, contudo, fundamentalmente diversos. Distinguir entre lei e evangelho é, segundo Lutero, a arte máxima em teologia. Delinearemos agora cinco diferenças entre lei e evangelho.

1.     Lei e evangelho diferem com respeito à habilidade humana no reconhece-los.
A lei é parte da vida humana. Inscrita, originalmente, no coração
Do homem, ainda é conhecida em parte mesmo após a queda no pecado[8]. Todos os homens, por selvagens que sejam, conhecem alguns coisas que devem e não devem. Sabem de algum modo o que devem e não devem fazer, o que é certo e o que é errado, e têm também algum sentimento de culpa. Pensam em categorias de bem e mal, por mais depravados que sejam. Por isso, a igreja, quando prega a lei, sempre pode encontrar um ponto de contato no incrédulo. Este, no mínimo, tem noção de obrigações e proibições.
Ao evangelho, por outro lado, ignora-o absolutamente o homem natural[9]. Não consiste o evangelho em ideias inatas. É a Boa-Nova que sempre nos vem de fora. Só a conhecemos quando nos é proclamada. A Boa-Nova é o registro do que Deus fez na história por nossa salvação, culminando na morte e ressurreição de Jesus Cristo. Por natureza, nada podemos conhecer dessa Boa-Nova. Todavia, temos conhecimento, por natureza, conforme ficou dito, de pecado e culpa, bem como de exigências e proibições absolutas.
     Há quem levante objeções contra esses assuntos. Representantes do relativismo ético[10] consideram inteiramente sem sentido e insipiente o conceito de um padrão absoluto que julgue as ações certas ou erradas. Insistem que o termo “deveres” não corresponde a nenhuma realidade concreta, que juízos de valor[11]  não têm sentido, e que ser sapiente requer que se subscreva o credo do relativismo, que não tem padrões absolutos, mas apenas as diferentes opiniões do homem – com “uma tão boa quanto a outra”.
     Entendemos que tal maneira de ver é perfeitamente irrealista. Caso se infligisse grande injustiça a um adepto do relativismo ético, ele exclamaria, inevitavelmente: “Isso é injusto!” Por que essa reação? Independentemente de nossas opiniões nessa matéria, a lei natural[12] de Deus existe porque Deus existe como Criador e Mantenedor do Universo. Não existe apenas quando a descobrimos. Quer a reconheçamos, quer não, ela existe. A lei natural de Deus opera como a lei da gravidade; mesmo que nada se saiba da gravidade, cai-se quando se salta da janela do décimo andar.
     Semelhantemente, verdade não é mera noção subjetiva, ainda que a gente não a considere. É ante, como se expressa Werner Elert, relação interpessoal. Se mentimos sistematicamente, ninguém nos tomará a sério. Acabamos totalmente isolados. Até para sermos bons mentirosos devemos ter um mínimo de respeito à verdade. Demonstram essas ilustrações que o fundamento da lei natural está na estrutura Criador-criatura da existência. É importante compreender que não se pode descrever adequadamente o conteúdo específico da lei natural de Deus. O Decálogo e a lei Áurea são expressões da lei natural, expressões da estrutura Criador-criatura da existência. Não há, porém, identidade entre elas. Por isso, não devia surpreender-nos o fato de a Lei Áurea, por exemplo, ser também do conhecimento de Rabi Hillel, afirmada no livro apócrifo de Tobias, no hinduísmo, no budismo e no confucionismo[13].
     O objetivo da lei de Deus é proteger as estruturas da existência contra o caos. Os códigos legais das diversas nações, mau grado enormes diferenças, constituem  expressões mais ou menos adequadas da lei natural de Deus, e dela dão testemunho. Ninguém é incapaz de perceber claramente a lei divina a menos capaz de cumpri-la por causa do pecado. Contut9o, a lei divina, natural, protege contra o caos da vida, o casamento, a família, a sociedade, a ordem, a cultura e a justiça civil – até que Deus intervenha, no juízo final.

2.     A lei e o evangelho diferem quanto ao conteúdo.

     A lei se constitui de exigências e proibições. Por ela Deus exige obediência perfeita em todos os tempos. O evangelho, por outro, revela o que Deus fez para nossa salvação. A lei se caracteriza como exigência; o evangelho é dom de Deus.
     Já houve quem perguntasse se não é artificial esta distinção. Perguntam se a mesma lei, o Decálogo, n]ao se baseia no ato gracioso do resgate feito por Deus. Citam: “Eu sou o Senhor teu Deus, que te tirei da terra do Egito, da casa da servidão”, encarando estas palavras como a base dos mandamentos que se seguem[14]. Segundo essa interpretação, Deus primeiro salva, e então exige: Não terás outros deuses diante de mim”. Estrutura similar aparece no Novo Testamento. Lá, dizem eles, o apóstolo Paulo salienta (Romanos 1.8) o que Deus fez, em Cristo, por nossa salvação, e à base disso Deus faz sua exigência: “Rogo-vos, pois, irmãos, que apresenteis os vossos corpo por sacrifício vivo a Deus”.
     Usando esse tipo de construção bíblica, Karl Barth, e muitos teólogos antes e depois dele, afirmaram que a distinção entre lei e evangelho é artificial e desorientador. Diz Barth que a lei nada mais é do que o evangelho em forma imperativa. Insiste que o imperativo “tu deves” se baseia no indicativo “eu te tirei da terra do Egito”, descrição do que Deus fez. Lei e evangelho são, por isso, segundo Barth e Brunner, a una palavra de Deus. Lei e evangelho recamam o mesmo homem: submete-te a Deus. Em sua maneira de ver, somente uma lei mal entendida, lei pecaminosamente pervertida e separa do evangelho, opõe-se ao evangelho.
    Em consequência disso, Althaus e Emílio Brunner distinguem entre mandamento e lei. Mandamento identifica-se como a reivindicação do evangelho, ao passo que lei é o empenho pecaminoso do homem no sentido de firmar direitos aos olhos de Deus.
     Essa questão será discutira com mais pormenores depois. Aqui é essencial declarar sucintamente o erro básico. Calvino, bem como Karl Barth, vê a lei exclusivamente do ponto de visto da legislação divina no monte Sinai. Mas a lei de Deus, com suas exigências, existiu desde a criação. Deus também condenou pessoas que viveram antes da legislação sinaítica. Se não se encara Gênesis 1-11 como o fundo contra o mal deve ser vista a história subsequente do povo de Israel, aí, sim, torna-se sem sentido a antítese à legislação sinaítica, e caso se rejeite a relação divina geral da lei independente de e anterior a essa legislação sinaítica, então a doutrina luterana sobre lei e evangelho é necessariamente falsa. Deve insistir-se nesse caso que a sequência justa não é lei e evangelho. É antes, nessa hipótese, evangelho primeiro e lei depois. Neste caso a lei, efetivamente, é apenas o evangelho na forma de imperativos.
     A sequência barthiana – “primeiro o evangelho, depois a lei – põe o segundo artigo do Credo antes do primeiro. Dessa maneira, inverte a sequência bíblica de criação e redenção. Além disso, nem ele nem Brunner compreendem que o amor de Deus na criação é idêntico ao amor de Deus na redenção. No último caso é Deus dando a si mesmo. Cristo morrendo por pecadores. Por isso, nem Barth nem Brunner se compões com o fato de que a revelação do juízo divino não é mera ficção em nossas mantes pervertidas pelo pecado, senão que realidade de todo independente de nosso conhecimento.
     Não há meramente uma revelação divina, a do amor. Há outra: a do juízo. Lemos em Romanos 1.18 que “a ira de Deus se revela do céu contra toda impiedade”.  O apóstolo Paulo está dizendo que isto é revelação. O juízo final, tanto segundo o Antigo Testamento como segundo o Novo, terá um resultado duplo: salvação e condenação. Lei, pecado e juízo divino precedem o evangelho e existem independentemente dele, quer sejam as promessas evangélicas do Antigo Testamento, quer o cumprimento em Jesus Cisto. Quando se ignora essa verdade básica, rejeita-se necessariamente, a doutrina luterana.

3.     A terceira antítese entre lei e evangelho trata da promessa de vida.   

     A lei promete vida sob a condição de obediência perfeita. Jesus a resumiu ao dizer: “Amaras o Senhor teu deus de todo o teu coração, de toda a tua alma, de todas as tuas forças e de todo o teu entendimento; e amarás o teu próximo como a ti mesmo. Faze isto, e viverás”[15]. Deve merecer-se a promessa da lei pela guarda dos mandamentos. Cumprimento é a condição da bênção de Deus.
     Por outro, o evangelho promete vida aos que não cumpriram a lei. A promessa do evangelho é livre e incondicional. Diz, em suma: “Porque pela graça sois salvos, mediante a fé, e isto não vem de vós, é dom de Deus[16]. É obra sua a própria fé, embora sejamos nós que cremos.  Assim como ele deu e sustenta nossa vida natural, ao passo que nós é que respiramos, assim nos dá a fé e oi novo nascimento, posto que nós é que cremos.
     O evangelho estabelece nova relação entre Deus e homem. É relação de graça. Se estamos sob a graça, não mais estamos sob a lei., Se vivemos da graça, não podemos gloriar-nos de nossas boas obras, nem mesmo de nossa fé[17].

4.     Lei e evangelho diferem quanto à finalidade.

     A lei de Deus ajuda a manter a ordem no mundo até o fim da história. Deus estabeleceu ordenações tais como o matrimônio, a família, a ordem política e social. Sua lei protege essa ordenações, sem as quais não seria possível a vida. Na teologia luterana chama-se a isso de uso político da lei. Por instrumentalidade da lei Deus refreia o mal e deixa claro que não abandonou este mundo ao mal. O uso político da lei é uma da atividades preservadoras de Deus nesta criação caída.
     Contratando com isso, o evangelho anuncia a realidade de nossa criação, que sucedeu na ressurreição de Jesus Cristo. A nova criação difere da antiga como a morte difere da ressurreição. O uso político da lei não tem lugar na nova criação.
    A segunda função da lei é convencer o homem de sua pecaminosidade. Do ângulo do evangelho, esta é a finalidade primária da lei. Aceitará o homem a salvação enquanto não souber que dela necessita? A lei, escreveu Melanchton, sempre acua[18]. Neste sentido Deus aparece como Juíz, aquele que pronuncia sentenças sobre transgressores da lei. “Maldito todo aquele que não permanece em todas as coisas escritas no livro da lei, para praticá-las”, escreve o apóstolo Paulo aos gálatas. Destarte a finalidade primária da lei é totalmente negativa. Seu propósito é mostrar ao homem sua verdadeira situação debaixo do juízo divino.
     Protestam aqui nomistas de todas as correntes. Raciocinam: “Ninguém pode ser perfeito; contudo, se tentarmos, a vivermos de acordo com os ditames de nossa consciência, em harmonia com nosso código moral ou religioso, Deus certamente o reconhecerá. Nossa culpa... bem, ele terá de perdoá-la, poios isso é com ele”. Se o relativismo e naturalismo[19] são esforços do homem no sentido de viver como se não houvesse lei divina, o nomismo é o empenho humano de viver como se a lei não passasse de norma da vida moral[20].

5.     Consequentemente, lei e evangelho diferem quanto ao efeito.
    
     Esta é nossa última antítese. Visto revelar o juízo de Deus, a lei produz, nos corações, ou  medo, desespero e ódio a Deus, ou segurança pecaminosa. A lei exige amor, mas não pode inspirá-lo. O evangelho, por seu turno, produz fé, amor, alegria e esperança porque Deus nos declara justos por causa de Jesus Cristo. Entre nós e a lei condenadora de Deus está Cis , que tomou sobre si o juízo divino, a fim de que pudéssemos ser livres. Deus declara justo ao pecador. Se um escravo foi libertado pela simples declaração de seu senhor, tal escravo se tornou pessoa livre e nova[21].
     A célere fórmula segundo a qual o homem é simultaneamente justo e pecador serve para precautelar contra toda tentativa da lei no sentido de reentrar pela porta dos fundos. Quem está em cristo é nova criatura, porque é pecador perdoado.
     É errônea a ideia popular de que Deus nos considera “como se” fôssemos justos. E teologia baseada num “como se” está baseada numa falácia. Deus não nos trata “como se” fôssemos o que não somos. “Justificado” implica que somos o que somos, que aceitamos a Deus e somos por ele aceitos. O veredito divino do perdão é dramaticamente oposto e só pode ser entendido como graça imerecida. Quem crê em Cristo, a si mesmo submete como isso ao juízo condenatório de Deus e à justificação.
    Em debater sobre lei e evangelho, os oponentes da dialética luterana defendem a tese de que a reação subjetiva do homem tanto à lei como ao evangelho[é sempre idêntica. Em ambos casos é obediência. Fé é obediência. Essa a definição que se pode colher em Barth, Bultmann, Brunner e muitos outros. Tornou-se lugar comum na teologia moderna. Nada obstante seu uso amplamente difundido, é difícil fazer o asserto à base do Novo Testamento. Nos evangelho sinóticos fé é a confiança de que Jesus pode e quer ajudar. Quando Jesus louvou a fé da mulher siro-fenícia, dificilmente estava a elogiar a obediência dela. Quando disse ao leproso. “Tua fé te sarou”, dificilmente estava a referir-se  a sua obediência. O tema central do evangelho joanino é crer que o Pai está no Filho e o Filho está no Pai. Substituir aqui como o conceito ou palavra “obedecer” é perfeito contrassenso.
     Abraão é o grande exemplo de fé para Paulo. Confiava Abraão que Deus cumpriria sua promessa, e, por confiar, obedeceu. Obediência a Cristo é, por isso, diferente de obediência à lei, porque pressupõe confiança em Cristo como Salvador. A obediência a Cristo não consiste na observância de mandamentos isolados; consiste em têrmo-lo diante de nós como a medida de todas as coisas. A manifestação mais evidente dessa obediência está no sofrer com paciência. Não houve vitória para Cristo exceto pela cruz. Nem há para nós maneira de viver na fé senão esta de tomarmos nossa cruz para segui-lo. Quem pensa que o cristianismo lhe oferece máxima paz de espírito como um mínimo de inconveniência, está grávido de ilusões. A fé torna-se obediência, isto é, crucificação do velho homem: “Não seja como eu quero, e, sim, como tu queres”. De um lado, obediência sob o domínio de Cristo consiste na destruição de nossas desejos egoístas e em suportar pacientemente a aflição que Deus venha a impor-nos. De outro, consiste em boas obras. Nesse respeito, a fé assemelha-se ao fogo. Assim como o o-fogo produz calor e luz enquanto vai unido ao combustível, assim a fé, enquanto estreitada com Cristo não pode senão produzir boa obras.
     Perguntará alguém: “Acaso não necessito eu, como cristão da diretiva da lei para orientação em minas decisões?” Em que pese a Brunner e Barth a resposta a essa pergunta é um simples NÂO. Se Cristo, a quem na fé me apego, é o padrão pessoal em minha vida, que coisa poderia a lei dizer-me e que eu ainda ignore? Acaso pode dizer ao cristão que não deve matar, adulterar, furtar ou mentir? Isso o crente já sabe. Não é conhecimento o que falece à maioria de nós; é antes o poder para fazer o que é certo.
     Nesse ponto entra a fé que se apega com Cristo e recebe perdão do pecado. A fé não procura recompensa porque já tem a salvação.   Obras precedentes da fé são boas porque Deus nos aceitou. O crente não tem a ilusão de que haja praticado obras supererogatórias[22], ou que tenha direito a recompensa. Ao passo que a teologia católica romana entende que a graça divina é requerida como medicina sobrenatural, a fim de habilitar o homem para a prática de obras, por ser estímulo, a teologia luterana entende que a graça é o veredito divino do perdão para o homem todo, as obras incluídas. Essa maneira de ver exclui toda e qualquer ideia de mérito.
     Como cristãos, praticamos nossas boas obras dentro da estrutura das ordenações naturais. Não existe aqui nenhuma casuística evangélica por trás da qual possamos esconder-nos a fim de nos evadir de responsabilidade em nossa vida comum. Não há casuística para escusar decisões pessoais através de apelo para um conjunto de normas gerias. Não há casuística que nos diga exatamente como proceder em determinado momento. Portanto, boas obras sempre são aventuras da fé. São boas não por conformes a alguma lei externa, mas porque feitas por um pecador perdoado. Tudo o que faz um pecador perdoado é om. Isso inclui a tarefa insignificante da dona de casa a manejar a vassoura, ou do sapateiro-remendão a fabricar calçados. Pode incluir também as grandes empresas científicas e culturais.  
     Uma vez que o crente está sob o perdão de Deus, suas obras são praticadas sempre em vista de seu perdão. As obras elas mesmas não diferem das obras da lei no que diz respeito ao conteúdo efetivo delas. Diferem quanto a motivação e objeto. São praticadas, não no intuito de alcançar favor aos olhos de Deus, mas porque o favor de Deus já foi recebido através de imerecido perdão. Estas obra são boas apenas porque nós pecadores absolvidos estamos numa relação de perdão com Deus.  
     Poderíamos resumir nossa primeira parte sobre esse ponto dizendo que lei e evangelho efetivamente se referem a duas relações divergentes entre Deus e homem. Diferem, particularmente, no que diz respeito a nossa capacidade de reconhece-los, quanto a conteúdo, promessa finalidade e efeito.

6.     Terceiro uso da lei.
     A muitos respeitos o “terceiro uso da lei” está no centro da moderna discussão sobre lei e evangelho. Consoante Agostinho e João Calvino, o homem é justificado a fim de que possa cumprir a lei. Entendiam o evangelho como remédio ou medicina que cura o pecador para habilitá-lo a fazer o que a lei prescreve. De acordo com eles, começo e fim do lidar de Deus com o homem é a lei. Lei e evangelho, não são , neste caso , duas relações divergentes, senão que um só. O desígnio do evangelho é servir o propósito da lei. Entendia Calvino que o uso primário da lei não é o de convencer o homem de sua pecaminosidade e torná-lo ciente do juízo divino. Parecia-lhe antes que o uso primário da lei é servir de norma e guia ao crente. Esse terceiro uso da lei é o primário. Conforme essa maneira de ver, o evangelho não introduz via salvadora diferente, senão que confirma a lei como o começo e fim da salvação. Desnecessário dizer que grande parte da pregação e teologia luterana seguem esse modelo agostiniano e calvinista[23]. Separar da lei o aspecto judicatório é privá-la da autoridade que ela reivindica para si. Se o juízo de Deus é inseparável da lei, neste caso lei e evangelho são deveres duas revelações divergentes: a revelação da lei, que condena, e a revelação da graça, que perdoa. Consequentemente, Werner Elert pode dizer: “Lei e evangelho são tão diferentes como juízo e perdão, vida e morte, dia e noite[24]. E não há dúvida de que assim é.  
     Inobstante, contrastando com o antinomismo, insiste a teóloga luterana que a lei também deve ser aplicada aos cristão. A Fórmula de Concórdia chama a isso terceiro uso da lei[25]. Em teologia luterana, por isso, o terceiro uso da lei é idêntico ao primeiro e segundo, excetuado o fato de que agora se aplica ao cristão. Claro que o crente não pode escapar do uso político da lei, porque não se pretende que o crente se isole no mundo . Deve, ao invés, viver dentro das ordens naturais, fazer progredir o conhecimento, a justiça social, pagar impostos, criar família, combater o mal, etc. Por conseguinte, o uso político ou civil da lei aplica-se também a ele.
     Mas o uso teológico da lei também se aplica ao crente. Para viver sob a graça não deve ele esquecer que, sento pecador, é condenado pela lei de Deus. De acordo com a lei, o crente está condenado. De acordo com o evangelho, está perdoado. Segundo a lei é pecador, velho homem. Consoante o evangelho é justo, virtuoso, nova criatura.
     A lei dirige-se ao velho homem, porque esse deve tornar-se em nada perante Deus, deve morrer. A nova criatura, por outro lado, está em comunhão com Cristo e só pode produzir boa obras, pois é árvore boa, que produz fruto bom.
     Essa tensão entre carne e espírito encontra seu paralelo na tensão entre lei e evangelho. Bem o sabia Paulo, pois não era ele nenhum herege perfeccionista. A razão por que tanto a lei como o evangelho devem ser usados constantemente na vida do cristão  está nessa dupla natureza do crente. A lei se endereça ao velho homem. Exortações evangelísticas dirigem-se ao novo homem, que é o ho0mem em comunhão com Cristo.
     A expressão “terceiro uso da lei” tem sido empregada frequentemente em relação a exortações evangélica. Contudo, é de bom aviso evitar essa aplicação ou descrição. As exortações da graça diferem amplamente dos mandamentos da lei, porque se dirigem apenas a crentes, apenas ao que não estão debaixo da lei, mas sob a graça, na forma de imperativos. Esta exortações nos admoestam: sede o que sois; vós sois a luz do mundo; por isso, resplandeça a vossa luz; fostes justificados pela graça; por isso, apresentai-vos a Deus como sacrifício vivo; fostes sarados; por isso, levantai-vos e andai; fostes chamados, por isso, segui-me.
     Baseiam-se estas exortações da graça essencialmente naquilo que Deus fez por nós em Cristo. Dirigidas ao crente, não são lei mas evangelho. Dirigida ao incrédulo, não são senão lei que condena. Para o crente são graça, porque baseada s na graça de Deus em cristo Jesus, a qual redime os pecadores do juízo da lei.
     Há outra diferença entre tais exortações da graça e da lei. Tudo o que se exige nestas exortações da graça é efetuado no crente pelo poder do Espírito Santo. Quando o homem é sujeito da ação designada por semelhante imperativo, é o mesmo Deus quem produz a ação. Escreveu o apóstolo Paulo: Porque fostes redimidos, “desenvolvei a vossa salvação com temor e tremor”, porque Deus é quem efetua em vós tanto o querer como o realizar. Os imperativos evangélicos são, por conseguinte, tão diferentes da graça. O cumprimento dos imperativos do evangelho não é condição da salvação; é  somente resultado.        
     Não há razão para objetar a essa sentença ou conclusão que os mandamentos da lei são transformados em exortações quando se mantém ao mesmo tempo a realidade da lei como juízo. O mandamento:  “amarás o teu próximo como a ti mesmo” é lei que condena a falta de amo do pecador e ao mesmo passo exortação evangélica para o crente, porque é Deus quem opera no crente aquele amor que é o cumprimento da lei. Entre o crente e a lei acusadora interpõe-se Cristo, que cumpriu a lei e tomou sobre si mesmo o juízo da lei., Por isso, se estás em Cristo, numa relação de perdão, e graça , e redenção com Deus, não amis estás sob a lei. Antes Cristo está então operando em ti para fazeres o que deves fazer como filho redimido. E podes fazê-lo porque estás redimido, porque é CONDUZIDO pelo Espírito.
     Desta arte, na teologia luterana, o aspecto soteriológico[26] da fé está claramente expresso na relação entre lei e evangelho. Teólogos barthianos encaram essa divergência como ameaça à unidade divina. Na realidade, esse desacordo salvaguarda a contingência e afirma a maravilha sem paralelo da graça de Deus em Cristo Jesus, Senhor nosso. Bastas vezes a posição luterana tem sido acusada de por em perigo o interesse ético através de sua alegada demasiada ênfase na soteriologia. Perguntam críticos: Se Deus é o sujeito agente e o homem o objeto passivo, tanto em relação ao veredito divino da lei, como no do perdão, não parece, neste caso que se debilita a responsabilidade do homem como sujeito ativo? A isso a teologia luterana pode replicar apenas: o homem só corresponde verdadeiramente a Deus quando não mais age como se fosse pecador condenado pela lei de Deus. Só pode responder verdadeiramente quando confia no perdão de Deus, quando objeto do perdão de Deus pela fé em Cristo.
     A fé é precisamente aquele ponto matemático, como lhe chamou Lutero, ponto zere da atividade do homem, onde esse [é objeto da declaração divina do perdão. A nova vida da fé é nova apenas quando objeto da contínua graça de Deus, que se renova todas as manhãs. Eis um paradoxo da antropologia cristã: o homem é verdadeiramente o sujeito agente apenas quando e enquanto se rende de todo, tornando-se nada mais do que objeto do veredito divino do juízo e do seu veredito de perdão.

Parte II
O Evangelho como fé em ação
    A doutrina de lei e evangelho é muito mais que distinção teológica, mais que alguma abstrata questão filosófica ou acadêmica. É vital à vida da Igreja, pois estamos tratando aqui com a própria vida. Nossa discussão diz respeito a Jesus Cristo – crucificado, ressuscitado e vivo. Tem que ver com cristão – mortos e vivificados em Cristo – onde quer que estejam: na família, na congregação, na comunidade, no mundo.

A)    A lei não pode habilitar o pecador a que satisfaça as exigências dela.

1.     A antítese paulina de lei e fé desconhecida no Antigo Testamento.

     No Antigo Testamento a lei nunca é posta em contradição com promessa, graça o fé. Antes, a própria lei é visa como dom da graça divina[27]. Notamos, ao mesmo tempo, que as epístolas de Paulo não oferecem uma avaliação da lei em termos de graça. O apóstolo Paulo apresente uma proposição de ou – ou. O Antigo Testamento oferece uma proposição de tanto - como[28].
     Começando por Gênesis 3, está  o Antigo Testamento cheio de referências à pecaminosidade do homem. Quando, porém, os homens crucificaram o Filho de Deus em nome da lei (“Temos uma lei, e de conformidade com a lei, ele deve morrer” – João 19.7), a pecaminosidade tornou-se mais óbvia do que nunca. E quanto Paulo se defrontou  com o Cristo ressurreto, aquele entusiasta da lei compreendeu que a lei nunca foi destinada a ser o caminho da justiça – porque Cristo é nossa justiça. O que o Antigo Testamento aparecera como proposição de tanto – como, aparecia agora em nova luz. Os homens são salvos ou pela lei ou pela graça. “Se a justiça é mediante a lei, segue-se que morreu Cristo em vão”? – Gálatas 2.21.
     A melhor maneira de se entender toda antítese paulina entre lei e evangelho é através do encontro de Damasco, quando Paulo compreendeu que Jesus Cristo havia ressurgido dos mortos e estava vivo. Para Paulo, a ressurreição de Cristo é o evangelho. Esse evento marca o início de nova criação, de novo eon[29], em que a morte é tragada pela vitória. Como início da nova era, a ressurreição marca também o princípio do fim da idade antiga. O apóstolo Paulo jamais cometeu o erro, por demais comum no moderno protestantismo, de considerar a ressurreição como uma espécie de apêndice, capítulo final, ou nota mais ou menos embaraçosa em pé de página no evangelho. É o alfa e ômega da fé, e o apóstolo Paulo nunca escreveu pondo de lato a convicção de que Jesus Cristo, que foi crucificado, está realmente vivo[30]. Isso aconteceu pela intervenção do próprio Deus, que ressuscitou a Cristo de entre os mortos, e estabeleceu nova era. Não sucedeu por operação da lei, através da atividade  preservadora e judicante de Deus. Paulo não estabeleceu nexo entre a ressurreição de Cristo e a lei, ainda que associou a lei com a morte de Cristo.

2.     A luz da ressurreição, o apóstolo Paulo entendeu o propósito da lei
diversamente do que sabia dizer o judaísmo contemporânea e mesmo a Antigo Testamento[31].

     A distinção popular entre lei cerimonial e lei moral não constitui a chave para entender-se “nomos” (lei) no apóstolo Paulo. Nomos, para ele, é uma unidade. É a soma total das exigências de Deus e a soma total de sduas ameaças. Quando diz que o cristão está livre da lei, o apóstolo Paulo não se refere a parte do nomos veterotestamentário, às porções rituais ou às jurídicas. Significa o sistema todo. Quando argumenta com os gálatas dizendo que não deveriam circuncidar-se, não está dizendo que a parte cerimonial da lei está superada. Diz que a lei toda está superada.
     Houveras sido opinião do apóstolo Paulo que apenas foram ab-rogadas por Cristo as leis cerimoniais e casuísticas do monte Sinai, e poderia ter poupado todo o argumento da epístola aos gálatas com a simples declaração de que a circuncisão, uma vez que pertence à lei cerimonial, está ab-rogada. E a insistência dos judaizantes na circuncisão teria estado fora de propósito, em razão do fato de que haveriam esquecido estar essa parte da lei ab-rogada.

3.     É falto identificar nomos com nomismo ou ergodicéia[32]

    Se bem que nomos produz ergodicéia quando usado por pecadores, não se identifica com ela (João 4.22). O nomismo é a perversão humana da lei de Deus. Parece de dupla ilusão: que autodicéia[33] pode fundar-se em oras e que a função acusatória da lei pode ser ignorada.
     Segundo o apóstolo Paulo, a diferença real ente judeus e gentios não se situa no plano da lei. Mesmo o fato de os judeus terem a Tora revelada é distinção relativa. A diferença real entre judeus e gentios foi sumariada pelo apostolo João quando disse: “A salvação vem dos judeus, não dos samaritanos”[34]. A diferença real está na eleição de Israel, nos atos gracioso de Deus, no êxodo, nas profecias, e na promessa do Salvador porvindouro, que o seria tanto dos judeus como dos gentios.
     Em razão do fato de ser desconhecida no Antigo Testamento a antítese paulina de lei e evangelho, críticos lhe carregam mal entendimento de função da lei conceptual. Perguntamos: por que separou o apóstolo Paulo de concerto, e de sua lei, a promessa? Porque ligou as promessas com a figura de Abraão em vez de Moisés?
     Primeiro, porque Abraão recebeu uma promessa que incluía gentios e judeus. Esta promessa cumpriu-se em Cristo. A promessa, ligada ao concerto, exaltou a Israel acima dos gentios.
     Segundo, a circunstâncias da controvérsia forçaram ao apóstolo Paulo a traçar a linha de Abraão a Cristo. Sustentavam os judaizantes que era mister pertencer-se ao povo de Abraão, ao qual essas bênçãos foram dadas, afim de participar das bênçãos de Cristo. Os que não eram membros do povo de Abração por nascimento, deviam unir-se ao judaísmo por meio da circuncisão. Mas o apóstolo Paulo argumentou que Abraão recebeu a promessa quando ainda incircunciso, que a recebeu pela fé, não diante obediência a leis, e que a lei mosaica, que prescreve a circuncisão veio 430 depois da promessa feita a Abraão. Finalmente, o apóstolo Paulo não concedeu que o concerto sinaítico é ato da graça de Deus. Descreveu-o como concerto que mata (2 Coríntios 3.7).

4.     O foco central para o entendimento do conceito paulino de nomes é o fato de que nomos não é apenas lei que exige cumprimento, mas também, e sempre, lei retributiva.

     Nesse ponto o Apóstolo concorda inteiramente com o conceito veterotestamentário de nomos. Através da lei o pecador colhe o que semeou (Gl 6.7). O princípio da retribuição é parte integral da legislação
divina (Êx 25; Dt 27.11-28; Lv 26).
     O princípio da retribuição é mantido nos materiais litúrgicos do Pentateuco[35]. É expresso no material biográfico do Antigo Testamento[36]. Expresso nas partes históricas[37]. Encontra-se em todo o Antigo Testamento, inclusive nos salmos e profetas. Do jardim do Éden ao dilúvio, e à torre de Babel, vemo-la em operação. Pode-se vê-lo no pronunciamento de Amós contra Israel, nos pronunciamentos de Isaías contra Judá e a Assíria, nos pronunciamentos de Cristo sobre Jerusalém, no discurso do apóstolo Paulo na colina de Marte, e nos quadro apocalípticos do juízo final. A lei da retribuição é a de Deus no sentido mais estrito da palavra. O homem ou o governo é mero executor de Deus, pois “a mim me pertence a vingança, a retribuição, diz o Senhor” – Dt 32.35[38].
     Muitas interpretações da teologia paulina simplesmente deixam de tomar em conta que juízo de Deus não é noção fictícia. A inimizade existente entre Deus e homem não é exclusivamente inimizade do homem a seu Criador. É também inimizade de Deus ao homem pecador. “Somos filhos da ira por natureza, escreve o apóstolo Paulo aos efésios. Que a atitude de Deus para com o homem nada é senão amor, é proposição de fé daqueles que estão em Cristo, e, por isso, não amis debaixo da condenação. Mas transformar a proposição “Deus é amor” em princípio teológico é entender mal a natureza do amor e passar por alto o milagre do amor de Deus em ação, quando toma sobre si mesmo, não um juízo fictício, mas o juízo divino. Não é verdade que Jesus deve apaziguar uma divindade irada para que ele possa perdoar. Não; e o próprio Deus que, em Cristo toma sobre si mesmo o juízo. Este é o mistério do amor divino.
     É lamentável que a teologia e exegeses modernas procurem escapar-se ao ensino de Paulo segundo o qual o juízo de Deus se manifesta na cruz de Cristo. Que Cristo estava sujeito a juízo é parte da mais profunda introversão[39] do apóstolo Paulo. “Aquele que não conheceu pecado, ele o fez pecado por nós”, o que vale dizer: Aquele que não tinha pecado foi tratado como pecador, não só pelos homens, mas pelo próprio Deus. “Ele o fez pecado”. E que: Cristo nos redimiu da maldição da lei tornando-se maldição por nós” quer dizer simplesmente isto: Cristo foi sujeito à condenação pelo próprio Deus[40].

5.     A lei exige uma justa relação para com Deus. Mas a lei não pode
estabelecer esta relação (Gl 3.21b).

     A lei exige agápe (Termo grego que designa amor Opõe-se a eros, desejo), mas o homem debaixo da lei não a tem. A lei é sana e espiritual (Rm 7.12,14), mas não pode tornar-nos santos e espirituais. Destina-se a lei a ser cumprida, mas não o é nem pode sê-lo. O objetivo da interpretação que Cristo fez da lei, conforme se encontra no Sermão do Monte, é revelar esse duplo aspecto: que a lei se destina a ser cumprida, mas que não é nem pode ser cumprida.
     A guarda perfeita da lei assegura vida – Rm 10.5; Gl 3.12. Os que praticam a lei são justificados – Rm 2.13. Mas isso é apenas uma possibilidade teórica, pois a lei nos crava ao chão e nos condena a odos perante Deus. Ninguém está excluído – Rm 3.19. Põe os homens debaixo da maldição de Deus – Gl 3.10. Por isso o ministério da lei é ministério da morte – 2 Co 3.7,9. A lei mata – 2 Co 3.6.
     Os que estão em Cristo , ao contrário, não mais estão sob a lei mas sob a graça. Estão em nova ordem nova relação, onde a lei não em lugar. O apóstolo Paulo, ao descrever essa nova relação da graça, muitas vezes a descreveu contra o fundo dos graciosos aos divinos de libertação em Israel. Todavia, a plena magnitude da nova ordem da graça aparece na declarações paulinas que a descrevem como a “nova criação”. A  palavra do perdição divino, a palavra da justificação, é nada menos do que a palavra criativa falada por Deus no princípio: Haja luz”.
     Frente ao Adão desobediente da primeira criação, está o novo Adão da nova criação. Em oposição ao homem da terra, sujeito a pecado, lei e morte, está o Homem  do Céu, cujo Espírito nos ressuscita da morte para novidade de vida. Dele nasce um novo Israel, nova humanidade. E por ele a nova humanidade espera sua completa manifestação como “filhos de Deus”. Já agora têm no coração o Espírito que clama: “Aba, Pai”[41].
     A palavra divina do perdão constitui a nova criação. Nas palavras de Emil Brunner, “assim como o toque de espada real ergue o mendigo ao estado de nobre, assim a declaração divina do perdão ergue o pecador ao estado de justiça”. A vida antiga que Des nos deu pelo nascimento natural, perdeu-se sob a lei. Lançando um olhar retrospectivo para aquela vida. O apóstolo Paulo diz: “Estávamos mortos em ofensas e pecados”. Deus. porém, nos concede, pelo perdão uma segunda vida. A fórmula paulina “estar em Cristo” expressa a comunhão simultânea na nova humanidade ou corpo de Cristo, e a com o Cristo vivo. O apóstolo Paulo sintetiza o conceito nestas palavras: “Pela lei morrei para a lei,; fui crucificado com Cisto; não obstante vivo, ou antes, Cristo em mim”[42].
     A palavra do perdão que põe o crente na relação da graça implica que o crente aproprie a si a experiências de Cristo. O ato histórico exterior da crucificação é ré efetuado em nossas almas. Sabemos que estamos condenados pela lei. Olhamos para a cruz de Cristo e aprendemos pela fé que esta é nossa própria condenação. Assim como Cristo se une conosco, tomando nosso lugar e carregando nosso peado e juízo, assim nós nos identificamos com ele entregando-lhe nossas vidas. A vida antiga, em suas ambições e soberba, morreu, e nova vida foi criada pelo perdão divino.
     Trata-se de vida agora escondida com Deus em Cristo. É preciso os olhos da fé para perceber a operação do Espírito Santo no imprimir-nos a imagem de Cristo. A vida nova, controlada pelo Espírito Santo, é vida livre da lei da culpa, do velho homem e da morte. Não é, contudo, vida autônoma, porem, teônoma (Vida não governada por leis próprias, mas pela vontade de Deus). É vida controlada pela graça de Deus. Em Cristo, o homem foi feito parte daquela derradeira ordem escatológica (Doutrina das coisas que deverão acontecer no fim do mundo) que os evangelho chamam reino de Deus.
     As exortações evangélicas são endereçadas a este homem em Cristo. Diferem da lei pelo fato de pressuporem a nova relação com Deus em Cristo. Cumprimento, por isso, não é a condição da justificação mas o resultado dela. É Deus mesmo quem produz em nós a vontade de fazer a obra a que está sendo exortado o novo homem. Todas as nossas boas obras são do próprio Deus, que ele opera em nós e por nós. São seus dons, mas é tarefa nossa andar nelas. Somente Deus conhece nossa boa obra. Tudo o que necessitamos conhecer é sua boa obra, e continuar a viver. Na nova relação da graça temos o poder de combater o bom combate da fé contra o diabo, o mundo e a nossa carne. E cremos que aquele que começou em nós a boa ora há de aperfeiçoá-la até o dia de Jesus Cristo. O amor, que é o fruto do Espírito Santo operando em nós, é o fim e o comprimento da lei. Cumprimento porque o amor é a verdadeira relação com Deus e o próximo exigido pela lei. “O amor é o fim da lei” porque o amor não conhece retribuição e juízo[43].

6.     O propósito divino da lei é ministério da morte.
     Não pode o homem reconhecer esse propósito enquanto está sob a lei. O apóstolo Paulo faz a declaração ousada de que “a lei veio paras aumentar as transgressões” – Romanos 5.20; Gálatas 3.19. Encerra-nos a lei debaixo do poder do pecado – Gálatas 3.22. Evoca desejos pecaminosos – Romanos 7.7[44]. Pela lei vem o conhecimento do pecado – Romanos 3.2). Esse conhecimento não tem exatamente o sentido de que eu conheça o que é certo ou errado, mas que conheço o pecado e sei que o pratico e como ele me comprometo. Enfrentando com esse propósito dado por Deus, esta tentativa do homem pecador no sentido de usar da lei como meio de justificação. Os judeus deveras têm zelo por Deus, mas é zelo pervertido – Romanos 10.2. Isso é o lastimoso no judaísmo. Não  alcançam a justiça de Deus, a saber, um relacionamento verdadeiro com Deus. Alcançam tão somente uma autodicéia – Romanos 10.3[45].
     Apenas pela exclusão da possibilidade da autodicéia manemos a lei – Romanos 3.31; Gálatas 3.15-19. Desta maneira al ei pressupõe e revela nossa oposição a Deus. A lei revela a inevitabilidade de nossa culpa aos olhos de Deus. A lei pronuncia a maldição de Deus sobre todos. Neste respeito, judeus e gentios se nivelam. A lei inscrita nos corações dos gentios tem o mesmo propósito da Torá escrita dos judeus.

B.     O evangelho torna o home capaz de amar.

1.     Jesus e Paulo sintetizam todos os preceitos no mandamento do amor – Mateus 22.38.
    
     O apóstolo Paulo fala apenas ocasionalmente do nosso amor a Deus. Por exemplo: “Todas as coisas cooperam para o bem daqueles que amam a deus” – Romanos 8.28. O apóstolo Paulo usa a palavra fé mais comumente para descrever a relação ou resposta do cristão a Deus. Contudo, o apóstolo também concorda que se cumpre a lei toda inteira quando se ama o próximo – Gálatas 5.14; Romanos 13.8-10. Assegura-nos, semelhantemente, o Decálogo que os que amam a Deus e guardam seus mandamentos receberão misericórdia – Êxodo 20.6; Há porém,      diferenças maiores:
A.    Primeiro, no Decálogo, o amor é a motivação para cumprir os
mandamentos. No Novo Testamento, o amor é o cumprimento da lei p Romanos 13.10. Torna-se clara a diferença quando se considera, por exemplo, a atitude de Cristo para com o sábado. O Antigo Testamento interpretava o cumprimento do terceiro mandamento como significando descanso e nenhum trabalho. Se o amor de Deus é apenas o motivo para cumprir esse mandamento, os fariseus o cumpriram de algum modo. Mas, se o amor é o cumprimento, Cristo o cumpriu e os fariseus não. Se o amor é o cumprimento, e não exatamente o motivo, está aberto o caminho para nos descartarmos de todas as leis cerimoniais e jurídicas.

B.     A segunda diferença principal está na transmudação do termo próximo
no Novo Testamento. O Antigo Testamento definiu próximo como concidadão judaico[46]. No Novo Testamento define próximo como sendo aquele que necessita de minha ajuda, alguém que Deus pôs no meu caminho. Não o escolho; Deus mo dá, e não posso ignorá-lo.

2.     A segunda caraterística é a absolutidade da exigência de amor; amai a Deus de todo o coração.

     Dupla mudança pode notar-se no Novo Testamento. Cristo trata o amor de Deus e o amor do próximo como coordenada. Um não existe sem o outro. Quando se ama o próximo, ama-se a Deus , e vice-versa. Não são duas espécies de ágape, senão que uma e a mesma  - 1 Coríntios 13. Amor ao inimigo é o teste subjetivo desse amor. Passar nesse teste significa amar a Deus de odo o coração. E amar a Deus de todo o coração significa ter um amor ciente de que Deus nos ama, não nos condena, não nos deixará colher o que semeamos, não exerce retribuição quando a nós. “O perfeito amor lança fora o medo”.
     Parece que temos paradoxo aqui. A lei veterotestamentária é interpretada pelo Novo Testamento como lei do amor. Mas esse amor neotestamentário não é mera interpretação a lei; substitui a lei,. O amoro é o cumprimento. Todos os mandamentos se resumem no mandamento do amor. Nenhuma necessidade de outro além desse. E o home que ama a Deus, confia que Deus não exercerá sua retribuição sobre ele, e que Deus perdoa, salva, justifica e vivifica. Não obstante, a lei permanece lei retributiva, não podendo ser transformada em lei que não conhece retribuição[47].

3.     O amor exigido pela lei é amor que a lei não pode dar.

A lei do amor nos condena precisamente porque não temos agápe enquanto estamos sob a lei., O preceito que ordena amemos o inimig (Mt 5.44) é mandamento bom. A dificuldade está em a gente, quando tem um inimigo, não poder amá-lo. Podemos não saber o que vem a ser assassínio, mas abemos o que é ódio; de outro modo não saberíamos de que é que Cristo está falando. Aplica-se o mesmo ao adultério e à sensualidade. Se, pois, conhecidos o ódio e o desejo libidinoso, estamos acusados. Por isso, o chamamento de Jesus no sentido de nos arrependermos, dirige-se a todos.

4.     É óbvio que no Novo Testamento agápe não é virtude ou qualidade que o homem possa alcançar enquanto está sob a lei.

Agápe é a nova relação de Deus conosco em Cristo, e nossa relação, por Cristo, com outros: nossos irmãos, o próximo, os inimigos, paravelmente ao ato reconciliatório de Cristo. O apóstolo Paulo descreve essa nova relação em vários termos: - como “em Cristo”, isto é, o crente está na esfera de Cristo, e dele dependente; - como “em pneumati”, como justificação, reconciliação, renascimento, regeneração, ou, simplesmente, como fé.
     Se estamos neta nova relação, já não estamos sob a lei, mas sob a graça – Romanos 6.13; Gálatas 3.25; 5.18.  Graça outra coisa não é senão o amor de Deus em ação. Estar livre da lei não é anomia[48], mas liberdade para Deus – Gálatas 2.19[49]. Estar sob a lei e estar na nova relação são termos e conceitos mutuamente excludentes. Não há condenação para os que estão em Cristo (Rm 8.1), porque Cristo tomou sobre si a maldição da lei – Gl 3.13. Dessarte a lei está cumprida e cessa de constituir ameaça a quantos estão em Cristo. Está cumprida mediante apápe, pois Cristo me amou e a si mesmo se entregou por mim – Gálatas 2.20. Por isso, o apóstolo Paulo pode dizer: Morro para a lei; já não tenho qualquer relacionamento com ela – Gálatas 2.19. O apóstolo não  diz que a lei está morte, que não mais existe. Diz que ele já não tem relacionamento algum com a lei, não mais está “hypo nomon” (debaixo da lei), porque está “hypo charin” (debaixo da graça) – Romanos 6.14. Gálatas 3.25; 5.18.

5.     Viver em Cristo é amar-se reciprocamente.

“Não está no poder de ninguém amar por decreto”, disse Kant. Podemos forçar outrem a que nos obedeça, mas a ninguém podemos forçar a que nos ame. Ora, a nova relação em que se encontra o crente é relação de amor divino. A leio de Cristo é ágape, amor que não procura os seus interesses, mas que tudo suporta, tudo sofre e se consome pelos outros – 1 Coríntios 13. Permanecer na nova relação de ágape implica amor recíproco. Permanecer na nova relação é cumprir a lei de Cristo.

6.     A lei de Cristo difere da mosaica em duas relações principais e duas secundárias.

Eis as duas diferenças precípuas:
a)     Em primeiro lugar, a lei de Cristo não está proposta para todos,
mas apenas para os que estão “em Cristo”, os justificados ou renascidos, os que tem fé. Está proposta para crentes, e apenas para crentes, que crucificaram a carne e estão na nova relação. Por conseguinte, o imperativo do amor ao próximo nasce do indicativo da nova relação. Separados da nova relação, os imperativos da graça são apenas nomos que nos acusa e condena. Mas aos que estão na lei de Cristo os imperativos da graça dizem: Sede o que sois aos olhos de Deus. Já estais numa elação de amor. Por isso, amai o próximo.

b)     Esses imperativos evangélicos, ou da graça, diferem da lei
mosaica porque tudo o que eles exigem é dado pelo poder do Espírito Santo. Na nova relação o homem é o sujeito da ação. Deus é o autor da ação. É Deus quem está produzindo ativamente o quere e o efetua – Filipenses 2.12. Por isso, o cumprimento dos imperativos evangélicos não é a condição da justificação, porém, o resultado dela. A recompensa que o imperativos do evangelho oferece não é de mérito mas de graça.

     Eis  as duas diferenças secundárias:

a)     Estar na nova relação implica também amor aos inimigos. Em razão
do fato de Cristo haver morrido por todos, todos são nossos irmãos potenciais. Amor ao inimigo em nova relação consiste em perdão ilimitado (Mt 18.21), e o propósito desse perdão é ganhar o inimigo como irmão para Cristo. Nossa ágape não principia com o amor ao próximo para culminar em amor ao inimigo; principia e termina no amor dos irmãos. Ágape é a nova relação de Deus para conosco por Cristo e a relação de cada um de nós, em Cristo, para com o outro.

b)     Quando Jesus ou o apóstolo Paulo citam Levíticos 19.18: “Amarás o
teu próximo como a ti mesmo”, não devemos entender mal a expressão “como a ti mesmo”, como se aí se preceituasse o amor-próprio, como se no amor-próprio se visse aí o fundamento do amor ao próximo. Fora estúpido ordenar amor-próprio, a essência mesmo de nossa natureza pecaminosa. Além disso, o amor-proprio, que busca seus próprios interesses, é eros, enquanto ágape é exatamente o oposto. Ágape é a nova relação que não busca o que é propriamente seu. A expressão “como a ti mesmo” é uma comparação, espécie de parábola. Com isso o Novo Testamento diz, por comparação: A naturalidade com que o pecador sempre ama a si mesmos é exemplo da naturalidade com que o pecador perdoado deverá amar desinteressadamente o próximo. 

7.     Por último, não podemos amar como cristãos a menos que creiamos como cristãos, a menos que estejamos na nova relação.

     Se não temos na lei de Cristo, não podemos cumprir o mandamento “Amarás”. A fé atua pelo amor – Gálatas 5.6. Não é verdade que a fé se torna fé justificadora por obras de amor, ou que se torna ativa pelo amor. A fé sempre é ativa em amor, e sem amor é morta. Segundo o apóstolo Paulo, a fé jamais é mero conhecimento cerebrino, nem é apenas crer doutrinas ou histórias. É confiança na graça de Deus, em Cristo, no evangelho. É submissão a Deus, a Cristo. É dependência de Deus, dependência para com o que ele fez por nós em Cristo, nosso Salvador. É a resposta do homem à ação amorosa de Deus.

Parte III

A unidade da Bíblia e de Lei e Evangelho

     Nesta seção final voltaremos nossa atenção ao problema bíblico de lei e evangelho. Esperamos descobrir, através de cuidadoso exame das Escrituras Sagradas, a fonte de erros modernos que entendem mal a unidade de lei e evangelho, e esperamos outrossim recuperar nossa própria perspectiva adequada.
     Antes da época do criticismo superior[50], a unidade fundamental da revelação bíblica era pressuposto. Sua unidade foi sustentada pelas dogmáticas da igreja. Por vezes, a unidade foi defendida através de arbitrária harmonização de passagens que discordam, e pelo ato de transferir, através do método alegórico de interpretação[51], a passagens veterotestamentárias maneiras cristãs de entender.
     A unidade da Bíblia foi dilacerada durante no período do liberalismo. Discutiu-se naquele tempo sobre as várias religiões dentro do Antigo e Novo Testamento. Houve quem viesse não apenas uma frincha entre o Antigo Testamento e o Novo, mas ainda entre a religião de Jesus e a religião de Jesus. Hoje, teólogos veem muito mais unidade na Bíblia do que há cinquenta anos. Não é fácil ver essa unidade. Voltemos, entretanto, a nossa questão básica: que é que dá unidade essencial à Bíblia?
     É necessário fazer uma série de comentários preliminares. Muitos teólogos veterotestamentários têm concentrado sua atenção no desenvolvimento da fé israelita[52]. Tomam como ponto de partida a eleição de Israel e o concerto. Tem relegado a segunda plana o domínio universal de Deus sobre a criação e todas as nações. Semelhantemente, têm relegado a plano mais insignificante a rebelião universal da humanidade e o juízo de Deus. Com semelhante ponto de partida e sequência, é natural para tais teólogos insistir em seguida que primeiro vem o evangelho. Põem em primeiro lugar ato gracioso por que Deus elegeu Israel e fez um concerto com o povo dele. Ao evangelho então se segue a lei, e, como lei do concerto, veem então a lei como forma de graça. Desta arte muita moderna teologia veterotestamentária sustente a teologia barthiana, na qual se identificam lei e evangelho.
     Verdadeira teologia bíblica levanta protesto aqui. Protesta contra aqueles teólogos veterotestamentários que desviam a atenção de Deus para a fé israelita em Deus. Em si mesmo, o empenho da teologia veterotestamentária pode ser legítima. Não pode ser, contudo, o ponto de partida da teologia bíblica.
     A teologia bíblia pressupõe Gênesis 1 – 11 para a continuidade da fé bíblica. São precisamente esses onze capítulos que tornam a fé israelita relevante para a teologia bíblica. Esses capítulos iniciais da Bíblia apresentam a Deus como o soberano Senhor da criação e de toda a história. Para a teologia bíblica a rebelião universal da humanidade e o juízo de Deus constituem a estrutura de referência dentro da qual dever ser vista a história de Israel. Assim deve ser porque esta é a estrutura referencial retomada pelo Novo Testamento. O Novo Testamento retoma, em toda a sua amplitude, a história da criação, da queda e do juízo divino. A criação original é seguida da nova criação, termo e cumprimento da antiga. O tema da queda é retomada no Novo Testamento: “Assim como em Adão todos morrem, assim em Cristo, “o segundo Adão” todos serão vivificados”.
     Como Deus é o Senhor de toda as nações, todas elas são objeto do quérigma[53] neotestamentário. Estas nações são as de Gênesis 1 – 11. São criaturas de Deus e ao mesmo tempo rebeldes que a ele se opõem.  Foram dispersos sore a face da Terra e são incapazes de se entenderem uns aos outros. Por ocasião do Pentecostes, os representantes dessa humanidade dividida ouvem, pelo poder odo Espírito Santo, a proclamação da salvação, sendo unidos no corpo de Cristo. No fim haverá, então, colheita universal, e as línguas de todas as nações contarão o louvor dos redimidos, perante o trono do Cordeiro que foi morto.
     Em essência, a teologia bíblica insiste em tomar a ordem bíblica como seu ponto de partida. A perspectiva bíblica da história é esta: no princípio o Criador, no fim o Redentor. De permeio, há , de um lado, pecado universal e juízo divino sobre todos os pecadores. De outro, promessa e cumprimento. Não há teologia bíblica onde se perde essa perspectiva bíblica da história. Nessa hipótese, há somente uma teologia veterotestamentária e outra neotestamentária.
     A teologia bíblica toma a criação, a queda e o juízo divino como o fundo da eleição de Israel. A história de Israel é visa então como parte daquela história universal que principia pela criação e termina pela manifestação da nova criação. É parte da história do juízo, que principia com a queda e termina com o juízo final. A exigência básica dirigida a Israel – deixar que Deus fosse seu Deus – é também a exigência dirigida às nações de Gênesis 1 – 11. A falta de não satisfazer essa exigência levou à expulsão do paraíso e ao julgamento das nações. Terminou essa ruína quando foi crucificado o único Filho justo de Adão e último Remanescente do verdadeiro Israel. O apóstolo Paulo disse que a lei mata porque pecado, lei, juízo e morte são ermos inseparáveis. Onde está um, estão os ouros três.
     Se não vemos a lei de Deus em relação à criação e à queda, podemos chegar a noções estranhas. Podemos sentir:
1.      Que a maior parte das pessoas estão livres da lei por não a conhecerem;
2.      Que apenas alguns conhecem a lei e a tomam a sério;
3.      Que menos ainda são levados pela lei àquela crise em que compreendem sua culpa.
Esse mal-entendidos pietista, que tem sobrevivido, na teologia moderna, em diversas maneiras, ignora vários fatos. Ignora:
1.      Que a lei de Deus não é idêntica a um conjunto de regras;
2.      Que lei, pecado, morte e juízo são inseparáveis;
3.      Que lei, pecado, morte e juízo são universais em razão da universalidade do pecado e porque Deus é soberano na história e na criação.  
A lei de Deus garante contra o caos, mas também garante juízo sobre o pecado. O Senhor da história é o Preservador de sua criação e também o Juiz de todas as nações[54]. De acordo com as mais remotas concepções sobre o dia da ira, nações foram ameaçadas de extinção simplesmente porque se recusaram a deixar que Deus as governasse. Dessa maneira, a ira de Deus, ainda que pareça carecer de motivação, baseia-se no suposto de que o homem se rebelou contra Deus e que Deus é o Juiz soberano de todas as nações.
     O Deus da Bíblia não é um sublime gentil-homem de babas brancas, indulgente e fraco, sentadinho, ociosamente, em sua cadeira de balanço, lá n céu. A Bíblia não fala de seu furar apenas no sentido de castigo, ou no sentido de trazer de volta seu povo. Sabe também a respeito de irrevocável destruição.
     À luz da teologia bíblica não é possível dizer com Karl Barth que juízo nada mais é do que graça, ou que a lei é a forma do evangelho e o evangelho o conteúdo da lei[55]. O simples fato de Deus falar, ainda não é graça. Se o é ou não, fica na dependência do que ele dia. Tudo depende disso: se sua palavra é de juízo ou de alvação.
    Sem dúvida que as ameaças de Deus podem ter função pedagógica e podem impedir o homem à misericórdia  divina. Todavia, se estas ameaças não cumprem esse propósito, ainda assim continuam em vigor. Admitimos dupla atividade de Deus. Devemos distingui entre sua atividade como Preservador da criação e Juiz de todas as nações, e a atividade na qual prometeu a Abraão que nele abençoaria, por graça, todas as nações da Terra. Esta promessa teve seus cumprimento em Jesus Cristo. Em sua ressurreição veio à luz nova criação. Assim, a história de Israel deve ser vista à base dessa dupla atividade de Deus: seu juízo e sua redenção, lei e graça.
     Voltemo-nos agora para alguns dos conceitos nucleares, centrais.  Através dos quais o povo de Israel expressou sua fé na graça divina. O conceito da eleição é de fundamental importância aqui. Foi Deus quem esc0lheu a Abraão. Foi Deus quem escolheu a Israel par ser propriedade particular sua. Em patê alguma do Antigo Testamento há qualquer dúvida a respeito de não ser essa eleição algo de permanente. O Novo Testamento fornece a resposta. Aí a eleição de Israel encontra seu cumprimento em Cristo. Nele todas as nações da Terra serão abençoadas.
     A noção de concerto igualmente é de importância. Historicamente, Israel foi uma sociedade pactuária. liga de tribos, formada em concerto com Deus[56]. Essas tribos reconheciam os atos de libertação de Deus e aceitavam seu governo. Juntaram-se para serem se povo servente, e juraram viver em obediência e confiança sob seu domínio.
     Tanto o concerto como a eleição devem ser vistos contra o fundo constituído de pecado e juízo. Devem ser vistos dentro do quadro da rebelião das nações contra a lei de Deus. A liga do concerto foi congregada a fim de guardar a lei de Deus, deixar que Deus fosse Deus de Israel. A eleição e o concerto foram considerados atos da providência divina, ou atos da graça no Antigo Testamento. O apóstolo Paulo, como contraste, distingue unicamente entre eleição e promessa de um lado, e, de outro, o concerto como obrigação a obediência. Faz essa distinção porque conhecia o termo exato do caso. A leis pactuárias foram impostas no Antigo Testamento como estipulações destinadas a assegurar que Israel suplicasse a Deus fosse ele Deus de Israel[57].
     Eleição e concerto eram inseparáveis da esperança de Israel. A esperança de
Israel nasceu da compreensão do fracasso de Israel. Anunciar que o povo de Deus lhe quebrantara a lei, e que, à semelhança da gentilidade, esteva sob o juízo de Deus, foi a carga da proclamação profética. Israel olhava por vingança contra seu inimigos e por libertação deles, mas não haveriam de vê-lo, pois tinham desconsiderado a lei do concerto. Haviam rejeitado o governo de Deus e estavam sujeitos a sua sentença condenatória.
     Veio a condenação. O Antigo Testamento lhe descreve a vinda. Inobstante, Israel olhou em frente com esperança. Esperança fundamentada neste promessa básica: “Eu sou o Senhor teu Deus”. Esta esperança assumiu muitas formas[58].
     Mas o Antigo Testamento apenas previu o cumprimento. Apontou para além de si. Aqui é que principia o Novo Testamento. Esse anuncia o grande evento, o ponto culminante da história. Revela o Novo Testamento que o próprio Deus veio a seu povo. A promessa básica: “Eu sou o Senhor teu Deus” cumpriu-se em Cristo. Tudo o que a lei tentar fazer mas não pôde em razão da pecaminosidade do homem, é dado em Cristo. A justiça que a lei exige é por ele cumprida.
     O conceito ou a inteligência da salvação no Antigo Testamento é mais limitada que em o Novo. Refere-se essa limitação ao entendimento da vida eterna. Além disso, o sentimento da vitória sobre  morte e sepultura descrito por Paulo no Novo Testamento não é tão completo. A visão da eterna comunhão com Deus também é mais restrita.
     Visto que as bênçãos de Deus ficavam na dependência do cumprimento da lei., Moisés escreveu como se Israel fosse capaz de cumpri-la. Paulo escreveu na convicção de que o homem natural não pode cumprir a lei. Está aqui uma diferença basilar. Consequentemente, algumas preces do Antigo Testamento refletem um espírito de autodicéia dissonante ao Novo Testamento[59]. Deve notar-se, com toda lisura, que o Antigo Testamento frequentes vezes registra notas de desespero, especialmente nos salmos[60]. É em tais passagens que a piedade veterotestamentária atinge seu ápice. É aí que o crente não se vangloria de sua inocência, fiando-se, ao contrário, inteiramente da misericórdia de Deus. É aí que ele se joga na promessa divina: “Eu sou o Senhor, teu Deus; não te deixarei nem te abandonarei”.
     Notamos tanto a continuidade como a descontinuidade do Antigo e do Novo Testamento em relação aos conceitos de lei e promessa. Pode ver-se a continuidade da lei na soberania do Senhor da história, a quem todo homem encontra como seu Juiz. A continuidade da promessa é a graça incondicional de Deus, que chama a Abraão, elege a Israel, liberta-o no êxodo e dá o cumprimento de sua promessa em Cristo.
     A descontinuidade da lei como lei concertual está na noção de que a lei concertual do Antigo Testamento pode ser cumprida. A descontinuidade da promessa pode ser vista na secularidade[61] da noção veterotestamentária de salvação. Como resultado dessa dupla relação, podemos encontrar uma multiplicidade de maneira de ver quando a relação entre Novo e Antigo Testamento se torna assunto de discussão[62].
     Em última análise, há dualidade na relação entre o Antigo Testamento e o Novo. É relação tanto de continuidade como de descontinuidade. A continuidade está, parcialmente, no fato óbvio de que o cristianismo, de um ponto de vista histórico, evolveu da fé israelita. Está a continuidade especialmente no fato de o próprio Novo Testamento afirmar que é o cumprimento da obra iniciada por Deus com Israel.
     Contudo, há também inegável descontinuidade. O fundamento dela está no fato de o cristianismo não ser mera continuação ou reforma do judaísmo de um ângulo de mira histórico. Teologicamente falando, o evangelho proclama a invasão ou irrupção de algo de novo e o fim do velho.
     O Novo testamento traz o cumprimento da esperança de Israel. Mas também pronuncia juízo radical sobre esta esperança. O evangelho proclama o cumprimento da lei e também o fim dela. A descontinuidade, em suma, é a dos dois períodos de tempo. Todo o Antigo Testamento é livro da época que vai da criação e queda à promessa, proclama o começo do fim desse período, porque a nova época veio em Cristo, por intermédio de sua vida, morte e ressurreição. Sob ambos os aspectos o Antigo Testamento é de relevância como livro que aponta para Cristo. A continuidade vê o Antigo Testamento e o Novo como dois atos de um só drama.
     Significa isso, inevitavelmente, que o Antigo Testamento assume novo e mais profundo sentido para o cristão. Para este, os olhos e as mãos da fé, guiados e movidos pelo Santo Espírito, veem e abraçam o que Deus fez e disse. A rebelião universal e o juízo de Deus, a lei do concerto e a desobediência de Israel, tudo converge num ponto. Esse ponto é a cruz. Também a promessa dada por Deus a Israel e a esperança israelita de uma final libertação para novo concerto convergem num único ponto. Esse ponto é a cruz d Cristo. A cruz é o ponto focal de todo o drama onde unem lei e evangelho, juízo e graça. Á luz da cruz, a história do Antigo Testamento recebe novo sentido, porque sabemos onde acaba a história. Mas isso não é tudo. Há também descontinuidade relevante entre o Antigo Testamento e o Novo. Lido com o Novo, o Antigo Testamento conduz a Cristo. Sua lei transforma-se na mensagem que exige a capitulação de nossa soberba. Conduz-nos à graça de Deus. O Antigo Testamento  aponta para o Anno Domini, para a nova era. Exatamente em razão disso é relevante.
     Por quê? Porque A. C., a era antiga, não é exatamente um período transato da história. A. C. é muito mais do que distinção no tempo. A. C. é tudo o que não foi redimido por Cristo. A. C. , no sentido que aqui lhe damos, significa sem Cristo. Antes de Cristo, por isso, vai até o juízo final. Tudo o que não está sujeito à atividade redentora de Deus cai no domínio de A. C. Este é o domínio da Lei. Sim. Antes de Cristo, nesse sentido, continua na igreja, também no crente. Justamente por essa razão é de importância o Antigo Testamento, pois dirigia-se ao homem A. C.
     Em minha ACeidade[63], eu, como velho homem, estou continuamente tentado a usar mal a lei no sentido do legalismo[64], como se Deus não fosse meu Juiz, como se eu não fosse já sempre um pecador condenado pela lei. Em minha ACeidade desejo as mesmas promessas temporais aneladas por Israel: paz, prosperidade, saúde, e vitória sobre meus inimigos. Desejo, em minha ACeidade, me mostrasse Deus, de maneira inequívoca, que ele está do meu lado e não do de quem me odeia.
     Posso ver, demais, que os pecados de Israel contra o converto, seu anomismo (lavlessness), avareza, idolatria, são precisamente também os meus peado. Posso ver que a esperança de Israel numa era em que “relhas de arado se converterão em podadeiras”, e “onde o cordeiro se deitará com o leão” é também exatamente minha esperança. É, contudo, esperança que jamais terei de acordo com minhas próprias estipulações. Desta arte a lei despedaça minha autodicéia e esperança acrísticas (Christless) e antecristicas. Conduz-me a um ponto em que me disponho a ouvir melhor esperança e de justiça melhor para além de toda a minha ACeidade. Espedaça a ilusão de que Antes de Cristo, isto é, esta criação caída em pecado, poderia vir a ser alguma vez o reino de Deus por via da lei. Pois a lei, sem a qual A. C. não pode existir, pertence ao Antes de Cristo, a essa criação caída. Pois lei, pecado, juízo e morte caracterizam o “Antes” de Cristo sem Cristo, exatamente como a ressurreição caracteriza o novo eon.   

       
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Luthers Evangelium Auslegung
                                                             Digitado, 14/09/2017  - Horst K.























[1] Igreja Luterana, Ano XXV, Porto Alegre 1964  nº 3 e 4
[2] Temos dois tipos de notas: do tradutor, caracterizadas no início por “Tr.” As do autor sem esta identificação
[3] Tr. - Não se entenda o termo em sua acepção hodierna da dedicação integral a uma causa., Entusiastas, para Lutero, eram os emotivos, fanáticos ou apaixonados que, via de regra, se julgavam agraciados com revelações particulares da divindade.

[4] Tr. - Demythologized, no original. O Entmythologisieren do controvertido professor de Marburgo ainda não tem tradução dicionarizada em português. Propomos aqui uma das possibilidades: demitificar, demiticação. Há quem use demitologizar.
[5] Tr. - A semântica estudo as significações mentais evocadas pelas formas linguísticas e as mudanças de significação por que passam as palavras ao longo dos séculos em razão de causas lógicas, psicológicas, sociais, históricas-culturais e outras.

·         [6] Tr. - Heresiarca do século II, inexatamente classificado como gnóstico pelo autor. Além de desaprovar a teoria eônica (teoria das emanações do ser suprimo), não queria Marcião ir além do evangelho e de Paulo, nem via a salvação na falsa gnose contra a qual o apóstolo adverte a Timóteo (evitando... as contradições do saber, como falsamente lhe chamam, 1 Tm 6.20). Deve-se a classificação tradicional (e no caso do autor isso aliás ressalta o texto) ao fato de haver uma série de semelhanças entre teses de Marcião e as do gnosticismo: menosprezo do Antigo Testamento, dualismo (oposição entre Deus e matéria), e outras. 

[7] Tr. - Um tipo de interpretação da antítese entre lei e evangelho. Na tese n°24 de sua primeira disputa com os antinomistas de seu tempo. Lutero assim lhes define o erro: Ensinam, perniciosamente que a lei de deus deve ser simplesmente removida da igreja (Cf. Concórdia Triglota, St. Louis 1921, Introdução Histórica, pág. 164).

[8] As Confissões Luteranas discutem lei e evangelho minuciosamente. Leia-se particularmente:
Primeiro uso: Apologia, artigo IV, 22
                          Fórmula de Concórdia, artigo VI,1
                          Fórmula de Concórdia, (Declaração), artigo VI,1
Segundo uso: Apologia, artigo IV, 64
                          Apologia, artigo III
                          Apologia, artigo XII, 90
                          Fórmula de Concórdia, (Declaração), II, 4
                          Fórmula de Concórdia, (Declaração), XII, 33
Terceiro uso: Fórmula de Concórdia, artigo VI
                         Fórmula de Concórdia (Declaração), artigo VI
                         Apologia, artigo, XXI, XXI,92
                         Fórmula de Concórdia, (Epitome), artigo IV
                         Fórmula de Concórdia, (Declaração), artigo IV
Romanos, 1.18-32; Romanos 2.14,15.
[9] As confissões Luteranas versam sobre as distinções entre lei e evangelho. Compare:
Apologia, artigo IV,5
Apologia, artigo IV,43
Apologia, artigo IV, 101 e seguintes
Fórmula de Concórdia, (Declaração), artigo V
Fórmula de Concórdia, Epitome), artigo V
Fórmula de Concórdia (Declaração), artigo VI
[10] Tr. – Teoria que nega a existência de um critério absoluto, alegrando que os valores éticos de indivíduo a indivíduo e de grupo a grupo, de acordo com uma série de circunstâncias.
[11] Tr. – Operação do espírito que aprecia o grau de perfeição de uma coisa relativamente a determinado fim.
[12] Tr. – A lei natural é uma ordem normativa que transcende o direito positivo. Funda-se a lei natural na necessidade que o indivíduo tem de valer-se dela. Sendo a criatura humana imagem de Deus, as exigências dessa criatura fundam-se, em derradeira análise, na própria essência de Deus, e a essência divina é, portanto, o fundamento último da lei natural.
[13] Para Karl Barth é errônea a ideia de uma lei natural. Sustenta a existência de apenas uma revelação de Deus: a revelação de Deus em Cisto. Mas Barth passou por alto uma coisa que parece perfeitamente óbvia. Se todos os homens são pecadores e Barth não o nega, deve haver uma lei contra a qual pecam. Se não há lei, não há pecado, diz Paulo. Se Barth afirma isso, não pode negar aquilo. É a lei natural, explana Paulo, que impele os gentios à prática de obras da justiça civil que pelo menos exteriormente acordam com a lei.
     A primeira distinção notada por nós entre lei e evangelho consiste no fato de a lei ainda ser parcialmente conhecida do homem natural. O evangelho, entretanto, é absolutamente desconhecido ao homem natural. Teólogos que interpretam a fé cristã em termos de ideias externas discordam destas asserções. Segundo Adolf V. Harnack, por exemplo, a essência do cristianismo consiste nas ideia da paternidade de Deus, da fraternidade dos homens e do valor infinito da alma humana. Essas ideias se podem encontrar no estoicismo,. Hoje poucos concordariam com semelhante interpretação do evangelho. 
[14] Êxodo 20.1-17.
[15] Lucas 10.25-28
[16] Efésios 2.8,9
[17] O Concílio de Trento anatematizou a doutrina da justificação somente pela graça. O catolicismo romano, sem dúvida, tem muito que dizer sobre a importância da graça no início, meio e fim da salvação do homem. Mas quando tudo está dito, ainda se juntam os barbantes das boas obras. A fé e a subsequente obediência, fé e boas obras, eis as condições d salvação. Devemos responder: ou fé, ou boas obras “para que ninguém se glorie”. Esta síntese entre graça e obas também existe – ocioso dize-lo – no protestantismo, pois a tendência de obras é a reação natural do homem à lei de Deus.
[18] Lauri Haikola, Universidade de Helsinki, de H. Engelland, Melanchton, pág. 289-293: Vilmos Vajta, Lutero e Melanchton, Filadélfia, Prelo Muhlenberg, 1961.
[19] Tr. – Segundo o naturalismo ético, o fim ético está em se agir de acordo com a natureza. A teoria nega a existência de uma realidade de natureza espiritual capaz de reagir vitoriosamente contra a pressão de necessidades físicas.
[20] AS três maneiras de ver (naturalismo, relativismo e nomismo) tentam libertar o homem da dedo da lei divina, que nos acusa porque sempre já somos pecadores. Nesse respeito, poder-se-ia comparar a lei a termómetro que registra febre fatal. Em si e por si, sem a lei, nem o termômetros pode curar. A lei, contudo, leva a pessoa a compreender que já não podemos ir avançando como se tudo estivesse bem. A moderna BEATNICKEREI, estúpida embora, deve ser entendida como revolta contra a impostura de uma sociedade que vive como se tudo estivesse indo bem.
     A verificação de que o homem sempre sai perdendo, de que sempre é derrotado e dobrado no mundo, que não pode desemaranhar-se a si mesmo, é expressa de muitas maneiras por escritores modernos. Ainda que desconhecidos amplamente de si mesmos, descrevem o homem em seu predicamente contra o fundo dessa sempre-acusadora lei de Deus. Ao passo que o propósito da lei é acusar-nos, persuadir da realidade do juízo divino sobre nós, é propósito do evangelho oferecer-nos perdão de Deus. Na lei Deus diz ao pecador: “Morrerás”. Pelo evangelho diz-lhe: “viverás para sempre, pois Cristo morreu por ti”.  
[21] O ato em que Deus declara justo não é juízo antecipado e analítico. [Juízo analítico é aquele em que o predicado – o que se enuncia do sujeito – está implícito no sujeito]. Esse é o ponto de vista  de Karl Barth e Reinhold Seeberg. Enquanto fariseu sempre creem que Deus os justifica à vista do que são. Karl Holl crê que Deus justifica os homens à vista do que serão. Insiste que Deve ser focalizada a subsequente santificação do cristão. Implica esta santificação que, se os homens se tornam cada vez melhores, sempre mais fortes, através da infusão de útil medicina, tornam-se afinal, suficientemente  bons para alcançarem o céu. Em derradeira análise isso simplesmente quer dizer que, se a justiça aperfeiçoada, real, está em condições de formar o embasamento de um juízo prévio e analítico de Deus, o processo todo da justificação de fato é visto exclusivamente do ângulo de mira da lei. Essa maneira de ver simplesmente não entende que o evangelho põe a descoberto uma relação totalmente nova entre Deus e o homem pecador, não entende que este evangelho confere ao homem uma justiça que não lhe é própria: a justiça de Cristo. Assim como não se pode assegurar a justificação por seja quais forem as obras do homem, tão pouco se podem considerar as boas obra do justificado como mérito garantidor de final salvação.
[22] Tr. – Do latim supererogatio, pagamento além do devido ou exigido. Segundo a teologia romana, obras supererogatórias são obra não requerida por Deus.
[23] Os teólogos suecos Ragnar Bring e Gustava Wingren, e os professores germânicos Werner Elert e Peter Brunner mostraram de maneira assaz convincente que Lutero jamais usou a expressão, “terceiro uso da lei”.
[24] Elert, Werner. A Morfologia do Luteranismo. St. Louis, Concordia Publishing House. Tradução de W.A. Hansen, 1962.
[25] Cf. relação 5.
[26] Tr. – Relativo à soteriologia, doutrina da salvação em Cristo.
[27] A razão dessa diferença está no fato de Cristo ser tanto cumprimento como fim do concerto antigo. Segundo fator: temos, em o Novo Testamento, introvisão mais profunda na pecaminosidade do homem. Trata-se de uma introvisão que avalia a justiça na base da lei.
[28] Disse o professor Ernst Kuenneth, de Erlangen, que “a teologia do apóstolo Paulo é a teologia da ressurreição”. Fez esta observação durante os debates da Terceira Assembleia da Federação Luterana Mundial em Minneapolis.
[29] Tr. – Do grego aioon,      época, etc. Não lançamos mão desse neologismo, gratuitamente. O autor obriga a isso: “Certainly the new time or period or aeon...” (Apêndice, II.6). Demais, o neologismo eon já se vai tornando corrente entre nós em obras teológicas e filosóficas.
[30] O apóstolo Paulo, geralmente, entende “nomos” como designando toda a legislação sinaítica. Assim quando fala da lei nos meus membros, a lei de minha mente, a lei do pecado e da morte, e a “lei do espírito da vida. A Revised Standard Version (RSV) geralmente traduz  essas referências com a palavra “princípio”. Talvez fora melhor traduzir “poder”. Seria, neste sentido, o poder do pecado, o poder da fé, o poder do espírito de vida. Digo isso porque “nomos não é princípio estático mas poder ativo. Ainda que o apóstolo Paulo não distingue entre lei casuística e apodítica (Em filosofia, apodítico é aquilo que expressa uma verdade necessária, evidente, absolutamente certa. O juízo apodítico enuncia algo como sento necessário. Já a partir daí pode entender-se o que Albrecht Alt pretende designar com a expressão lei apodítica: lei que expressa proibições categóricas, absolutas.), deve admitir-se, contudo, que usualmente  pensa nas exigências éticas da lei  Indica-o sua asserção de que para os gentios as exigências da lei são atestadas pela consciência deles. A consciência dos gentios certamente não testemunha da lei cerimonial e casuística do Pentateuco. Mas por outro, o apóstolo Paulo, diversamente dos profetas veterotestamentários e de Jessus, não definiu a natureza da obediência à lei contrastando-lhe as exigências éticas e rituais ou criticando as últimas. Não há paralelo paulina semelhante a Marcos 7.14 e seguintes. A razão porque deixa de estabelecer diferença está em ele considerar a lei como ordem de compulsão na forma de exigência que também anunciam juízo sobre o pecador, e é, no sentido mais lato, a atividade preservadora e judicante de Deus.
     Também a Tora judaica, adequadamente entendida, deve lembrar o judeu de seu fracasso, de sua rebelião, do fato de ser ele sempre pecador. Retrolança-o à graça de Deus, à eleição e à promessa. E do mesmo passo a Tora impede o desenfreio do mal. Também as obras da lei inscrita nos corações dos gentios atuam como freio contra o mal. Do mesmo modo ambas acusam o pecador. Para o apóstolo Paulo, judeus e gentios estão sob a lei de Deus, e essa lei decreta: “Nenhuma carne é justificada perante Deus em razão das obras da lei”. Carne, aqui, significa homem pecador. A lei não diz respeito a nomismo, mas à lei de Deus que se opõe ao nomismo.  
[31] Veja Gálatas 3.15-18, onde o apóstolo Paulo se refere diretamente à legislação sinaítica.
[32] Tr. – Criamos esse neologismo para traduzir work rigtheousness. A Werkgerechtigkeit do alemão.       Formamos ergodicéia, autodicéia, nomodicéia segundo o modelo teodiceia (de Theós, Deus e dikee, justiça), termo criado por Leibniz para entrar no título de uma obra em que o filósofo procura justificar a bondade de Deus contra os argumentos tirados da existência do mal. Já existem outras palavras na língua portuguesa em que entra o elemento dicéia, embora com sentido diverso Por exemplo: etnodiéia, direito das gentes.
[33] Criamos a neologia autodicéia (cf. nota anterior) para traduzir self-righteousness. A Selbstgerechtigkeit do alemão Já corre em círculo teológicos luteranos o hibridismo autojustiça, de mais fácil inteligência. O adjetivo correspondente a autodicéia seria autódico.
[34][34] Essa afirmação não tem paralelo no Antigo Testamento. Necessariamente. O concerto antigo é o primeiro ato do drama da divina salvação, e o apóstolo Paulo conhece seu termo no segundo ato. Pode, por isso, num retrospecto, ver o que seria impossível ver no  primeiro ato. O concerto antigo mata. Por que? Porque a permanência naquele concerto dependia da condição de que a lei fosse cumprida. O fato é muito simplesmente que a obediência exigida pelo Antigo testamento, de um lado conduziu a flagrante desobediência, e de outro ao orgulhoso nomismo. Em si mesmas, as leis apodíticas são parte da estrutura desse eon. De outro lado, a promessa dada por Deus, bem como seus atos de graça, seus atos de libertação da opressão, o presente da herança da terra, etc., tudo aponta para o novo que veio em Cristo. Longe de entender mal a função da lei concertual veterotestamentária, o apóstolo Paulo, de certa maneira, a entendeu melhor do que ela entendeu e explicou  a si mesma.
     A derradeira interpretação errônea da posição o apóstolo Paulo quanto à lei pode ser assim sintetizada: lei e evangelho, afirma-se, nunca são contemporâneos. Constituem dois períodos sucessivos de tempo. A época ou período da lei vai de Moisés a Cristo, ou da queda a Cristo. Durante esse período foi dada a promessa, e novo princípio se fez por intermédio de Israel. A época do evangelho estende-se de Cristo até o fim do mundo. Ainda que autores de teologia dogmática da estrutura de Edmund Schlink e exegetas da escola lundensiana advogam o ponto de vista de que a distinção paulina da lei e evangelho nunca se refere a uma simultaneidade dialética, senão que sempre a duas épocas subsequentes no tempo, não podemos concordar. Entretanto, que lei e evangelho não sejam senão uma sucessão irrevogável de dias épocas, é exagero. Por certo que o novo tempo, ou período, ou eon tornou-se realidade com a ressurreição de Cristo, e por isso mesmo não poderia ter existido antes. Poder-se-ia salientar mesmo que, uma vez que o apóstolo Paulo esperava a volta de Cristo ainda em vida dele, a ideia de uma sucessão de suas épocas era naturalíssima. Dizer, porém, que a lei desapareceu com a ressurreição de Cristo, fora tão néscio como dizer que o antigo eon desapareceu com a ressurreição. A ressurreição marca o início do fim do antigo eon, mais ainda não seu desaparecimento.
     Os que estão em Cristo não mais estão debaixo da lei, mas isso não quer dizer que a lei já não existe. Seria este o caso se fosse verdade, como diz Schlink, que lei e evangelho sã apenas duas épocas sucessivas no tempo,. Par Paulo é possível cair da graça e voltar a estar debaixo da lei.
     E contudo é pequena a dúvida quanto a existir, nesse ponto, ligeira mudança de ênfase entre o apóstolo Paulo e Lutero. Quando o apóstolo Paulo descreve a história da salvação, nomos refere-se ao período de vida anterior à vinda de Cristo e bem assim anterior à conversão da pessoa., Lutero, de outro lado, reinterpretou o esquema temporal de dois períodos na história por haver reconhecido que nem a lei nem o antigo  eon são niilizados (Apelamos para essa neologia porque aniquilar já não expressa apenas e nitidamente a ideia de reduzir a nada) ou deixaram de existir. Destart4e, o que de um lado se pode descrever como sucessão de duas épocas, pode ser descrito igualmente como ocorrência diária. O cristão vive deveras simultaneamente em dois eons ou épocas.
     Quando a lei me acossa e tortura, estou no tempo da lei,. Quando o coração é levantado pela promessa, é tempo da graça. Juntam-se no coração duas fases distintas, separadas pela vinda de Cristo. Cristo, que veio a uma vez no tempo, vê agora diariamente. E na medida em que não estou em Cristo, estou sob a lei e sou membros do eon antigo, que passa. Em Cristo sou justo. Abandonado aos meus próprios recursos sou pecador,. Fundamenta-se essa dualidade antes de tudo no fato de a heresia do perfeccionismo ser rejeitada pelo apóstolo Paulo (também crentes podem cair de Cristo). Deve-se a dualidade, em segundo lugar, ao fato de lei e evangelho descreverem dupla relação entre Deus e o homem. Segundo a lei, o homem está condenado; de acordo om o evangelho, está perdoado e salvo.
    Podemos sumariar, então: 1. Na antítese paulina não há identidade entre lei e nomismo; 2. nem é a lei idêntica a lei cerimonial; 3. O apóstolo Paulo não entendeu mal a função da lei no Antigo Testamento; 4. Lei e evangelho não podem ser exclusivamente relegados a dois períodos sucessivos de tempo.
[35] Gênesis 38.7: “Er, porém, o primogênito de Judá, era perverso perante o Senhor, pelo que o Senhor o fez morrer”.
[36] Números 14.23: “Nenhum deles verá a terra que com juramento prometi a seus pais”.
[37] A menos que se julgue ser esta uma dessas coisas que não têm lugar no Novo Testamento, pode procurar-se essa passagem e encontra-las reafirmada em Rm 12.19, 2 Ts 1.8, Hb 10.30 e Ap 6.10. Diz o apóstolo Paulo (Rm 4.15) que a lei “suscita a ira”. Diz assim porque a lei é sempre lei retributiva. Para o pecador, vida sob a lei é, por isso, vida debaixo da maldição – Gl    3.10. Entende-se mal a lei quando se a vê, à maneira calvinista, mera, primária ou exclusivamente como norma de comportamento moral. A lei é sempre retributiva porque o Deus da história sempre é o Deus da retribuição. Jesus e o apóstolo Paulo aludem ao Deus da retribuição e à lei retributiva quando falam do juízo, condenação e ira divina. 
[38] A mensagem do juízo, que através todo o Antigo Testamento, é retomada em o Novo. É o Deus do amor quem diz, em Oséias: “Portanto para Efraim serei como a traça, e para a casa de Judá como a podridão (Os 5.12): “Porque para Efraim serei como um leão, e como  um leãozinho para a casa de Judá: eu, mesmos despedaçarei, e ir-me-ei embora;  arrebatá-los-ei, e não haverá quem livre” (Os 5.14). Não se deve perder este ensino bíblico. De outro modo acabaremos no sentimental vovô celeste, incapaz de ferir uma mosca. A ira é símbolo da reação da santidade de Deus e de seu juízo., Somos justificados pela graça porque Deus nos redimiu, em Cristo, da maldição da lei. O próprio Deus nos declara justos, porque morreu por nós.
[39] Tr. – Mas um neologismo vocabular que ainda não frequenta os nossos dicionários. Traduzimos com ele o termo inglês insight, correspondente ao alemão Einsicht, compreensão.
[40] Deus falou na vida, morte e ressurreição. Não do modo em que fala através da natureza ou de desenvolvimentos históricos, mas de um modo comparável apenas à palavra criadora por ele pronunciada no princípio, “quando falou e se fez”.
[41] Gálatas 2.20.
[42] A vida nova é nova apenas enquanto o velho homem está morto. A Tensão entre o novo e o velho homem, entre a dupla relação de Deus, não pode ser dissolvida por teorias que do evangelho fazem lei e da lei evangelho. O crente é arrastado a uma atalha. A lei de Deus, e bem assim o evangelho, são propostos pelos poderes das trevas.  O  conflito entre Deus e Satanás é peleja absoluta. Para a fé, todavia, não pode haver dúvidas quanto ao desfecho. Pode ser que nos esperem mil cruzes, mas enquanto nos apegarmos à cruz de Cristo, estaremos marchando para a vitória, apesar de toda aparente derrota, pois todo poder é dado “aquele que nos amou e em seu sangue nos lavou de nossos peados”.
[43] Interessante o fato de o apóstolo Paulo, ao citar um dos dez mandamentos, reportar-se aqui ao que proíbe desejos pecaminosos. Muito claro o paralelo com o sermão do monte.
[44] Cristo ilustrou esse ponto em sua parábola sobre o fariseu e o publicano.
[45] De acordo com a lei do Antigo Testamento, um servo podia processar seus com-servos pelo não pagamento da dívida, exceção feita do ano jubilar. Aos olhos de Jesus, é servo ímpio, porque não tem amor. O amor exige renúncia integral aos direitos legais da gente.


[46] O estrangeiro não podia ser explorado enquanto vivesse no meio do povo da aliança. Podia-se, no entanto, cobrar-lhe juros. – (19) Cristo e os apóstolos referem-se a essa lei sempre que falem de juízo.
[47] Se os cristãos da Galácia queriam voltar à escravidão da lei, o apóstolo Paulo está dizendo que Cristo de nada lhes aproveita e que caíram da graça, porque Cristo é o fim da lei – Gálatas 5.1-4; Romanos 10.4.
[48] Tr. – Lawlessness, no original. A Gesetzlosigkeit do alemão. Propomos, como tradução o neologismo: anomia.
[49] Esse câmbio do indicativo ao imperativo é muito comum nas epístolas de Paulo (E. g. Gálatas 5.1; 5.13; 5.25 Romanos 6, etc.).
[50] Tr. – No original, Higher Criticism. Chama-se assim a tarefa de averiguar a autoridade dos livros sagrados, a integração ou não de fontes anteriores, a reconstrução e datação dessas fonte, os tempos e as condições em que os livros foram escritos, o propósito e caráter deles, etc. Lower Criticism é a crítica textual, ou de restauração (restauração do texto original).
[51] Tr. – Método inventado pelo filósofo judeu Filon, de Alexandria (século I), figura importante do ecletismo, ao lado de Cícero. Seu método foi muito apreciado por Origenes. Partindo da tese de que é verdadeiro tudo o que as Escrituras contém, não podendo haver contradições nelas, o método prevê o abandono do sentido literal sempre que este gere dificuldades. Com seu método, Filon procurou harmonizar a filosofia grega com o Antigo Testamento. O método lhe permitiu afirmar, por exemplo, que a criação de Eva é a origem da sensualidade. Hoje, sentido alegórico das Escrituras designa, principalmente, o que exprime a correspondência entre o Antigo Testamento e o Novo. Os outros três são o literal, o moral (também chamado tropológico) e o anagógico ( indutivo, o mais  profundo, em que tudo é símbolo das coisas do mundo divino).
[52] Em Colossenses 3.3 e seguintes, o apóstolo Paulo diz: “Porque morrestes, e a vossa vida está oculta juntamente, em Deus” (indicativo). “Fazei, pois, morrer a vossa natureza terrena” (imperativo). Na lei de Cristo o indicativo sempre é o fundamento do imperativo. Sob a lei de Moisés dá-se o inverno. Em outras palavras, ele diz: Faze isto – cumpre o imperativo – e viverás – indicativo.
[53] Tr. – Aportuguesamento de termo grego que significa proclamação de arauto, comunicação, ordem, pregação.
[54]  (2)Pelo que respeita ao Antigo Testamento, a fé israelita em Deus foi algo de único no mundo antigo. Poucos o negariam. Não quer isso dizer que faltem paralelos entre o culto de Israel e o dos povos que lhe eram vizinhos. O sistema sacrifical, por exemplo, em muitos pormenores é similar ao dos cananeus. Sua tradição legal mostra certo parentesco com o código de Hamurabi e ouros documentos do Oriente Próximo. Sua literatura  poética, os salmos, a literatura de sapiência, tudo tem paralelos na literatura de seus vizinhos. Apesar de tudo isso, a fé israelita representou, entanto, radical quebra com seu ambiente. O Deus de Israel foi absolutamente único no mundo antigo, e é o Deus de Israel quem dá unidade à Bíblia., Em contraste com o paganismo antigo e seu panteão de divindades masculinas e femininas, o Deus de Israel situa-se em oposição à parte. “Eu sou o Senhor teu Deus”, diz ele. }Esse desafio paira sobre o único da história de Israel. É exigência e promessa. E nessa exigência e promessa absolutas temos um aspecto da unidade dos testamentos. Pois a exigência e a promessa são retomadas no Novo Testamento e a igreja encontra o cumprimento da promessa na pessoa de Jesus Cristo. Confessa, por isso, a igreja: “Creio que Jesus Cristo é meu Senhor e meu Deus”.
     Assim, o Deus de Israel era de todo em todo diferente das divindades do Oriente Próximo. Enquanto a Ásia Menor tinha deuses relacionados com a natureza, o Deus de Israel é o soberano Senhor da história e da criação. Ao passo que os deuses pagãos eram os mantenedores do status quo, o Deus de Israel é o Senhor da história que se aproxima em juízo e graça.
[55] Não se pode identificar a lei de Deus exclusivamente com legislação divina, pois inclui outrossim a atividade ordenada e preservadora de Deus na criação. Sobrevém-nos também como juízo na vida dos indivíduos e das nações. A construção da torre de Babel, a expansão do império assírio, a falta do rei Saul em não assassinar o Agague e a negação de Cristo por Pedro não podem ser entendidos como transgressões de uma legislação específica, e contudo são pecados. São pecados porque pecado e juízo têm sua unidade interna no fato da oposição do homem a Deus.
     O juízo de Deus também se estende àquelas nações que ignoram a legislação sinaítica. E isso porque tal juízo independe de dada legislação. Do jardim do Édem a Noé, de Noé à torre de Babel, de Babel aos pronunciamentos de Amós, Isaías e Jeremias contra Moabe, Assíria e Babilônia. Deus é representado como o soberano Juiz da história. Seus juízos se realizam esmo quando não há transgressão do estatuto de algum código de leis.
[56] (4) Que pretende exprimir Karl Barth com a palavra forma? Explica dizendo: “A lei está no evangelho assim como as tábuas do Decálogo estão na arca do concerto”. A ser isto assim, pode a gente inventar sua sentença dizendo que o evangelho é a forma da lei e a lei o conteúdo do evangelho. Em todo o caso, lei e evangelho são idênticos no pensamento barthiano. O erro fundamental de Barth está em deligar ele a lei divina da criação e da queda, e em identificar a lei com a legislação sinaítica. Isto o leva a outro erro: identificar graça com juízo.  Por isso, consoante Barth “o fato de Deus falar é graça”. Mas isso é disparate. O que Deus falou através de Isaías contra a Assíria não foi graça, senão juízo sobre a Assíria. O que Jesus falou contra Cafarnaum e Jerusalém não foi graça mas juízo. Quando Deus, no último dia disse: “Apartai-vos de mim, malditos, não será graça, será juízo.
[57]  (5) Abrecht Alt. Dividiu a leis do Pentateuco em três categorias: apodítica, casuísticas e culturais.
A)      As leis apodíticas expressam proibições categóricas. As mais importantes são o Decálogo (Êxodo
20; Deuteronômio 5) e o do decálogo siquemita* de Deuteronômio 27.15 e Levíticos 19.13-18. Estas leis têm a seguinte características: não dizem o que em dado caso se deve fazer; declaram apenas o que em nenhuma circunstância pode fazer. Pode pôr-se em dúvida , a om direito, a propriedade de chamá-las leis,. Não se pode usá-las para procedimentos judiciai. São contudo, a espinha dorsal da lei do concerto. Contém a reivindicação de Javé* quanto ao seu povo da aliança. O propósito delas é assegurar a fidelidade concertual dos recipientes com os quais Javé fez aliança. (Concerto originalmente, não era acordo entre dois sócios iguais, mas entre senhor e vassalo., O senhor promete proteção, ao passo que o vassalo promete obediência às estipulações do concerto). As leis apodíticas mostram como se deve realizar a fidelidade concertual, a saber, evitando tudo o que é ato de infidelidade. Aquele que não honra unicamente a Javé, o homem que procura adquirir poder sobre ele por via mágica e pinturas, o que não honra pais, destrói a vida, profana as instituições matrimoniais de Jeová, tal homem fia fora das lindas  do concerto. Deve ser destruído. Nunca devemos esquecer que parte inseparável da lei apodítica é o anunciamento do juízo sobre o transgressor. Essas leis apodíticas destinam-se a ser sinais de advertência em torno do círculo da aliança. Fora delas não há fidelidade concertual, mas apenas destruição, maldição divina.
     As proibições da lei apodítica deveras são paralelas às exortações neotestamentária da graça. Ambas dirigem-se apenas ao povo do concerto; fundamentam-se ambas no ato gracioso da eleição e libertação de Deus. O cumprimento da lei apodítica não estabelece o concerto. Antes, pelo contrário. Em virtude de se haver concedido a Israel um concerto, deve Israel, por isso, cumprir a lei,. Todavia cumprimento é a condição da permanência no concerto, e descumprimento põe o pecador debaixo da irrevogável maldição. Todas as teorias sobre o terceiro uso da lei têm seu exemplo na lei apodítica. “Salvos para servir” – eis a divisa do terceiro uso da lei. No Antigo Testamento, contudo, a divisa é: Salvo se serves”. E isso ordinariamente, se passa por alto.
     Todas as leis do Pentateuco pressupõem o concerto como ato da graça divina. Mas a questão é: obedecerá Israel? Pois obediência é a condição de se permanecer no concerto. 
B)       O segundo grupo de leis, as casuísticas, são instruções para os júris leigos das aldeias. Encontram
se nas decisões do livro do concerto (Êxodo 21.1-22). Têm forma de fácil reconhecimento, a saber, forma de sentença condicional: “Se, ou quando acontecer isso ou aquilo”. A prótase, a cláusula condicional, dá breve descrição de um caso, e a apódose* dá instruções que devem orientar o júri popular. Segundo forma  e conteúdo, as leis casuísticas de Israel têm muitos paralelos nas leis dos povos co-lindantes.
     Essas leis expressam o interesse de Jeová pelas atividades quotidianas do povo do comércio. Mas é precisamente aqui e nas sequentes leis cultuais que se escondia o perigo do nomismo farisaico. No caso da leio apodíticas, já a formulação negativa deixa claro que cumprimento não merece comunhão  com Deus. De outro lado, cumprimento das ordenanças positivas facilmente poderiam levar à ideia de créditos junto a Deus.
C)       Dá-se o mesmo no respeitante às leis cultuais de Levíticos e Números. Em grande parte essas leis
são regulamentações para sacerdotes e leigo em matéria de piedade cultural, pureza e sacrifícios. Expressam, todavia, a compreensão da pecaminosidade do povo da aliança. Desa arte, é precisamente a lei eu deverá levar Israel a pegar-se com a misericórdia de Deus. De outro modo levará a duro legalismo.
D)           A lei é inseparável do juízo e o cumprimento da lei é a condição da permanência na relação
concertual.  Aí a lei adquire autoridade independente. Absolutiza-se. Entre Deus e o povo interpõe-se a lei de Moisés, com seus inumeráveis regulamentações, que perderam contudo com a vida. Ser israelita significa, agora, cumprir a lei, e o cumprimento funda exigências junto a Deus. É absolutizada a lei. O caminho a Deus já não é o caminho de Deus ao homem pela graça de Deus; é o caminho do homem a Deus. A lei, em vez de atirar o homem sore a graça de Deus, condu-lo ao nomismo que encontramos no período pós-exílio.   

·         De Siquèm, cidade das montanhas de Efraim. É a Neápolis dos gregos. Situa-se num vale entre os montes Gerizim e Ebal. Obedecendo a ordem de Moisés, colocaram-se sobre o monte Gerizim, para abençoarem o povo, Simão, Levi, Judá, Issacar, José e Benjamim. Sobre o monte Ebal ficaram, para amaldiçoar o povo. Rúbem, Gade, Aser, Zebulon, Dã, e Naftali. Cf.: As doze maldições (do decálogo) pronunciadas pelos levitas. Daí a designação do decálogo siquemita.
·         Esta formação corresponde ao Jahweh do texto inglês, seria a correta do ponto de vista da forma original Jeová resulto de combinação das consoantes JHVH com as vogais de ADONAI, Senhor, que os judeus , ao lerem as Escrituras substituíam ao letragrammaton sagrado, inarticulável. Todavia, sendo consuetudinária a norma da linguagem (correto é aquilo que está de acordo com o uso dos bons autores e da classe culta na atualidade), devemos admitir Jeová, a forma que mais corre entre nós e a única dicionarizada.
·         No original inglês, result clause. É a oração condicionada que em português se chama apódose ( inglês tem o correspondente apodosis). A condicionante é a prótase. 
[58] “Um Messias de linhagem de Davi reinará em paz”. Novo concerto, com a lei inscrita no coração, substituirá o antigo. O dia do juízo virá e Deus destruirá seus inimigos, e  então “ele será nosso Deus e nós seremos seu povo”.
[59] O Salmo 26, por exemplo, diz: “Faze-me justiça, Senhor, pois tenho amado na minha integridade. “São me tenho assentado com homens falsos, e com os dissimuladores não me associo. Aborreço a súcia de malfeitores. Lavo as minhas mão na inocência”. A primeira pessoa aí lembra os fariseus no templo. Podemos ter toda compaixão possível desse justo atribulado a quem põem cerco os inimigos, mas não oramos nesse estilo. Por melhores que sejamos, nosso Senhor nos ensina a orar: E perdoa-nos as nossas dívidas”.
[60] No Salmo 51: “Cria em mim, ó Deus, um coração puro”, a confissão do Salmo 32: “Bem-aventurado aquele cuja iniquidade é perdoada, cujo pecado é coberto”, e a declaração do Salmo 130:!Se observares, Senhor, iniquidades, quem, Senhor subsistirá?” constituem evidência do em que insistimos nesta sentença.
[61] No original, thisworldfiness. Em alemão dir-se-ia Diesseitigkeit, ainda não dicionarizada. Qualidade daquilo que diz respeito ao aquém.
[62] De um lado, há as tendências judaizantes que encaram o Novo Testamento como apêndice ao Antigo. Não só os judaizantes da Galileia pertencem a essa categoria, que também eruditos* veterotestamentários, como Van Ruder, o qual desconsidera inteiramente a reivindicação neotestamentária no sentido de ser o cumprimento  e fim do concerto antigo. Pode caracterizar-se a isso como nomismo e ergodicéia modificados. De outro lado, há uma multidão que simplesmente ignora o Antigo Testamento. Outros o rejeitam abertamente, embora se o saúde, em teoria, como parte da escritura divinamente inspirada. Ainda assim, na prática o relegam a posição sem importância.
     Marcião foi o primeiro representante desse grupo, e seguem-lhe na esteira homens tão ilustrados como Adolf von Harnach*; Franz, o filho do grande Friedrich Delitsch, Emmanuel Hirsch, e também Rudolph Bultmann. Veem o Antigo Testamento exclusivamente em descontinuidade com o Novo. Para Bultmann, o Antigo Testamento sem dúvida é de utilidade. Serve como espelho. Nele o homem pode ver seu próprio dilema. Embora útil, dizem, o Antigo Testamento não é essencial. A filosofia existencial* pode, na realidade, produzir os mesos resultados.
     Mesmo quando evitamos a falácias do marcionismo e judaísmo, há alguma vias em que se pode ver a relação entre os dois testamentos. Pode ver-se, por exemplo, a importância do Antigo Testamento em termos de instrução moral: Caim matou a seu irmão Abel – não faças isto. Davi matou a Golias – vai e faze da mesma maneira. Ou podemos visualizar o Antigo Testamento como introdução ao Novo. Certamente o é. Mas se isso é tudo, podemos fizer que é introdução longa. Podemos ver o Antigo Testamento como história sem salvação, e por certo que há alguma verdade nessa afirmação, porque o Antigo Testamento não se estendeu até o tempo do cumprimento. Será, porém, o Antigo Testamento meramente história de um fracasso? Acaso não está também aqui o Deus cuja graça se eleva acima de toda falência humana, pouco importando quão ruinosa haja sido? Por isso, outros encaram o Antigo Testamento como Heilsgeschichte, história da salvação. G. Ernest Wright escreveu primoroso livro nesta linha de pensamento. Certamente há alguma verdade nisso. O próprio Novo Testamento, em seu molde profecia-cumprimento, testemunha disso. Todavia, legítimo como é, não pode o Antigo Testamento ser entendido apenas sob a rubrica de Heilsgeschichte, porque também é história de amarga falência, e não se pode ignorar isto.

*Scholars, no original. As conotações do nosso erudito o tornam imprestável para traduzir scholar. Os espanhóis traduzem escoliasta. Em português, o termo escoliasta designa pessoa que fez escólios, interpretação de textos. Afrânio Coutinho julga não haver inconveniente em traduzir scholar por escolar (Cf. Da Crítica e da Nova Crítica, Editora Civilização Brasileira S.A., 1957, XII).
*Harnack saudava em Marcião o primeiro reformador do cristianismo.
* Filosofia cujo ponto de partida e objeto é o exame do Da-sein, do individual, do concreto. Segundo a ideia nuclear das doutrinas existencialistas, existência é sinônimo de possibilidade e autoafirmação.


[63] Tr. – B. C. ness, no original. Poder-se-ia traduzir antecristidade.
[64] Legalism, no original. Formamos legislismo, alternativo de nomismo, como sugestão para os debates futuros em torno de uma terminologia técnica portuguesa da teologia luterana. Existe legislista (adj e subst..), termo depreciativo que designa aquele que legisla.

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